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28 junho 2010

179. Disparada rap

Em seu imprescindível texto A fratria órfã, a psicanalista Maria Rita Kehl faz lúcidas abordagem e análise sobre o esforço civilizatório do rap. Entre outros aspectos, a autora escreve que se por um lado os rappers "parecem interessados em radicalizar um discurso contundente de oposição", por outro lado, a consciência e a atitude (cuja força vem do investimento na palavra) significam "orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e de pobreza".
Recusando a postura de pop star os rappers falam para seus semelhantes: os jovens da periferia. O sentimento de proximidade daquilo que é dito (cantado) com a realidade do ouvinte (que precisa preparar o coração para ouvir a realidade cantada) é a meta do rapper. "As letras são apelos dramáticos ao semelhante": os manos. Ainda para a autora citada acima, "a designação de 'mano' faz sentido: eles procuram ampliar a grande fratria dos excluídos, fazendo da 'consciência' a arma capaz de virar o jogo da marginalidade".
Dito isso, pensar sobre a versão que o rapper Antônio Luiz Júnior - o Rappin Hood - fez para a clássica e canônica "Disparada", de Téo de Barros e Geraldo Vandré, amplia nossa consciência das verdades brasileiras. A "Disparada rap" de Rappin Hood, registrada no disco Sujeito homem 2, 2005 (um disco assumidamente brasileiro: cheio de misturas luminosas e iluminadoras), além de evocar o castigo da seca, aponta para onde os retirantes (ainda) migram: a periferia das grandes cidades.
Novos sentidos são disparados. Outras verdades são investigadas. Rappin Hood, como sugere sua persona, "rouba" dos ricos e entrega aos pobres. Ou melhor, desliza o lugar da canção "Disparada" para presentificá-la (dar de presente) aos manos. Ao mesmo tempo em que restitue a valorização de "Disparada" na história da canção brasileira. “Eu não quero que o irmão escute e se revolte, que queira quebrar tudo. Quero que ele aprenda a contestar, perguntar, tudo de forma organizada”, afirma.
Ora se dirigindo a um mano, ora falando com um dessemelhante, o sujeito da canção desenha o percurso do seu cotidiano: produz novo significado à exclusão social. A voz de Jair Rodrigues (o homem que cantou "deixe que digam, que pensem, que falem" marcando a clara entoação da fala no canto), entrecortada pela voz de Rappin Hood (que ora ratifica, ora faz pequenas alterações no que é dito por Jair), fortalece a mensagem cantada, pelo sabor da importância de Jair na nossa canção.
As sonoridades nordestinas e o sampler misturam passado e presente a fim de abrir um futuro possível: a hibridação (em um país misturado, miscigenado) que une canção e rap, negros e brancos. Happin Hood encontra uma terceira margem. Distante da segregação racial (e consequentemente total).
Se "é para entrar na história", "Disparada rap", tensionando a mistura que constitui o Brasil, já entrou. O rap já se inscreveu na história da música popular brasileira: Rappin Hood prova isso: “Em cima da cadência do samba, eu vou rimando. Não quero ser cópia de um rapper americano”.

***

Disparada Rap
(Téo de Barros / Geraldo Vandré / Rappin Hood)

"É pra tocar no rádio,
é pra tocar em qualquer lugar,
que é pra entrar para história"

"eu acho que o rap tem que ir por esse caminho,
virar cada vez mais musica po-po-pular, po-po-pular,po-po-pular brasileira"

Prepare o seu coração (prepare o seu coração)
Prás coisas que eu vou contar (pra tudo que eu vou falar)
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

São Paulo capital, terra da garoa,
Gente ruim, gente boa
Milhoes de pessoas andando pelas ruas
Lutando pra sobreviver, verdade nua e crua
Vida tá dura, irmao, na correria
Cê fica sem trabalho passa fome e a familia, entao
Quantos vieram de longe para aqui viver
Sonhando com melhor vida, esperando vencer
Tem que correr, tipo Dona Maria,
Levanta as quatro e meia pra atender a freguesia
Tem dia, que a dor nas costas nao aguenta
Com mais de 60 luta pra ganhar 50 irmao
Pra esse povo sofrido juntei meu rap cançao
Jesus há de voltar, prepare o seu coraçao

Prepare o seu coração (prepare o seu coração)
prás coisas que eu vou contar (pra tudo que eu vou falar)
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

Distante, voa o pensamento do migrante
Fugindo da seca, vida de retirante
Constante de ser realidade do país
Ir pra cidade grande ter o que sempre quis
Feliz, é o que pensava que iria ser
Ter carros, mulheres, dinheiro, poder
E a desilusao levando irmao
Procurando emprego e andando em vao
Com a mala na mao, pensando em voltar
Pra terra natal sonha em retornar
Desde de criança ja queria ser alguem
Vir pra capital vencer na terra de ninguem
Pois bem, ser pobre no Brasil vida de cão
Mas por ordem e progresso, aí, prepare o seu coraçao

Prepare o seu coração (prepare o seu coração)
Prás coisas que eu vou contar (pra tudo que eu vou falar)
Eu venho lá do sertão (eu venho lá de longe ó),
eu venho lá do sertão (mó caminhada ó, muita saudade)
Eu venho lá do sertão (muita esperança)
e posso não lhe agradar (muitas lembranças)

(Rappin'Hood e Jair Rodrigues)

musica po-po-pular, po-po-pular,po-po-pular bra-bra-brasileira
musica po-po-pular bra-bra-brasileira

(Salve mestre)

Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu

RAPPIN'HOOD: Eh trem bom, queria agradecer meu cumpadre, meu mestre: salve Jair Rodrigues
JAIR RODRIGUES: Não tem que agradecer nada meu irmao, to aí precisou de mim é só chamar
RAPPIN'HOOD: Eu respeito axé
JAIR RODRIGUES: Falo

"Em 1966, Jair Rodrigues interpretou 'Dispara',
música de Geraldo Vandré e Téo de Barros,
no festival da Record e tirou o primeiro lugar,
empatando com 'A Banda', de Chico Buarque de Holanda,
interpretada pelo próprio Chico e por Nara Leão.
Esta é a história"

Um comentário:

Jô Martins disse...

Obrigada, Leonardo... não conhecia essa versão... li seu texto, vi o clip, fiquei toda areepiada... lindo demais