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19 outubro 2010

292. Coração Imprudente

Para Vera Lúcia

Cancionista sensível, Paulo César Batista de Faria, o Paulinho da Viola, sabe equilibrar com competência singular o tradicional (aquilo que passa de geração à geração) e a inovação (aquilo que imprime modernidade) à canção.
Seus sambas e choros são marcados por melodias e harmonias que conferem respeito às regras do cânone, mas sempre atravessados por certa jovialidade: tensões iluminadas pela paixão, à canção. Paixão que segue o lema "ame-o e deixe-o livre para amar", ou seja, amar a canção, para Paulinho, é não deixa-la parar no tempo; é modernizá-la; é pôr-la para girar e misturar. Com discernimento.
Além de regravar canções dos "militantes" dos gêneros, Paulinho preza pelo contato com aquilo que os jovens estão criando. Esta atitude, louvável, liga tempos: preserva a genealogia da canção, por colocá-la no embate com o contemporâneo.
Eis o caso da canção "Coração imprudente", que une Paulinho da Viola (representante da "velha guarda") e Capinan (poeta, politicamente engajado, da Tropicália). O resultado é um delicioso chorinho, pronto para balançar os corações.
Nunca é demais lembrar que o choro, invenção genuinamente urbana e carioca, "é o mais importante gênero instrumental brasileiro, além de constituir uma maneira de tocar que tem no improviso uma de suas características principais", como Jairo Severiano escreve no seu livro Uma história da música popular brasileira.
"Polcas que incorporavam a síncope do batuque", os choros, mesmo, de modo geral, mantendo "a forma rondó de três partes, (...) evoluiu de música dançante para música virtuosística, feita para ser ouvida e apreciada", escreve o autor.
Há várias sugestões para o termo que teria vindo do "xolo" (baile dos escravos das fazendas); da incorporação musical dos choromeleiros; da sensação de melancolia que caracteriza as harmonias do gênero (acompanhamento grave do violão); por exemplo. Henrique Cazes, autor do imprescindível livro Choro - do quintal ao municipal, defende a tese de que o termo é resultado do modo afetadamente sentimental (choroso) de abrasileirar as danças da Europa.
"Coração imprudente" (A dança da solidão, 1972) é chorinho (meio samba-choro) que investiga as possibilidades de um coração machucado. O sujeito busca a motivação da canção e a encontra na dor, de um coração que bate devagarinho "pra não ser notado"; que sai de cena, envergonhado por ter se entregado, para sarar o machucado.
A canção, deste modo, canta o que é o choro: metacanção, "Coração imprudente" diz que choro é instrumentos, voz e letra a serviço da disjunção amorosa. O conjunto cancional tematiza aquilo que está registrado na letra, adensado no gesto vocal e reiterado no manejo sonoro dos instrumentos.
Está lá no Evangelho de Mateus, 10:16: "sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas". Parece que o sujeito da canção esqueceu a primeira premissa. Mas, afinal, quem há de julga-lo, se depois de fugir um pouquinho, estamos sempre (humanamente) nos descuidando, para "sofrer de novo o espinho"? Eis o motor da vida, de quem faz choro.

***

Coração imprudente
(Paulinho da Viola / Capinan)

O que pode fazer
Um coração machucado
Senão cair no chorinho
Bater devagarinho pra não ser notado
E depois de ter chorado
Retirar de mansinho
De todo amor o espinho
Profundamente deixado

O que pode fazer
Um coração imprudente
Se não fugir um pouquinho
De seu bater descuidado
E depois de cair no chorinho
Sofrer de novo o espinho
Deixar doer novamente

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