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30 abril 2010

120. Eu não sou da sua rua

A globalização (iniciada nas relações pelo mar) e a ideia de desterritorialização levam-nos a complexificar a pergunta: "onde está o indivíduo?", ou ainda: "a que lugar pertence o sujeito?". Assim, a relativização e a artificialização do mundo (macroesfera) passam a ser temas que afetam as microesferas criadas pelo sujeito, posto na roda viva.
A "perda do local" provoca mudanças nas paisagens (sempre ficcionais) internas e externas do ser. O exterior não é mais acolhedor. Surgem as "ilhas desertas" (de alma).
O sujeito de "Eu não sou da sua rua" (Mais, 1990), um flâneur que passa (transita) pela rua (experimenta o risco da rua), canta a impossibilidade das comunicações interpessoais. As aliterações do título da canção iconizam o farfalhar (plainar) do sujeito "sobre" a cidade e suas ruas. Talvez em busca de algo que possa chamar de seu, reflexo do desejo de segurança, diante do risco de caminhar.
Sempre estrangeiro, o sujeito tenta contato com o ouvinte (o outro sempre estranho). Mas, ora, se emissor e receptor não falam a mesma língua, como pode haver comunicação? Exatamente pela vivência solidária de desraizamento de ambos. Não é fácil sair do "local" (mesmo que o outro lugar se revele como promessa de felicidade), precisa-se das construções afetivas frágeis (falsas aparências de proximidade), porém vitais.
A interpretação de Marisa Monte, acompanhada pela luxuosa percussão de Naná Vasconcelos, cria um espaço onírico, mas, ao mesmo tempo, material (paradoxal), com referências ao movimento da máquina de um trem (das cores) que não pode parar, e muito menos se fixar: ir, ir indo.

***

Eu não sou da sua rua
(Arnaldo Antunes / Branco Mello)

Eu não sou da sua rua,
Eu não sou o seu vizinho,
Eu moro muito longe, sozinho.

Estou aqui de passagem.

Eu não sou da sua rua,
Eu não falo a sua língua,
Minha vida é diferente da sua.

Estou aqui de passagem.

Esse mundo não é meu,
Esse mundo não é seu.

29 abril 2010

119. A novidade

O sol nasce para todos, diz a voz popular, a questão é saber o que fazer com isso. Assim, cada qual alimenta seus desejos, suas taras e nóias de acordo com a necessidade premente.
Deste modo, enquanto para alguns uma sereia sacia a "alma", para outros ela enche a barriga. Seja como for, ela mata (morrendo) a fome de viver de quem lhe admira e se deslumbra com sua presença ali naquela praia, ali na areia.
Obviamente, "A novidade", com sua levada jamaicana (e correta passionalização no refrão), traz como percurso narrativo o tema das discrepâncias sociais e como tal dicotomia diz (canta) muito do que somos enquanto nação, povo e gente (de toda parte).
Gravada no disco Selvagem? (1986), "A novidade" canta os encantos (e o infortúnio), com concisão e sofisticação, daquela que é tomada, desde Homero, como o símbolo do canto de vida e morte. A sereia, cuja voz condensa o passado, o presente e o futuro de Ulisses, chegou até nós - sob várias interpretações - como exemplo da sedução que mata (nos vários sentidos do termo).
Ou seja, aquilo que se anuncia como novidade, que veio dar à praia, vindo do incomensurável e misterioso mar, pode acabar estraçalhado, estraçalhando-nos.
O estraçalhamento da sereia (objeto) põe a nu o esgarçamento e a arrebentação das tessituras internas do poeta e do esfomeado (sujeitos). E, mesmo despedaçada, a sereia atinge sua missão existencial: sufocar o sujeito nas águas da vaidade e da (des)memória de si.
A canção canta sobre o quanto podemos ser cruéis (Selvagem? Como indicia a capa do disco?) na ânsia de atender às nossas "vontades": O milagre se torna pesadelo, num piscar de olhos.

***

A novidade
(Gilberto Gil / Bi Ribeiro / Herbert Vianna / João Barone)

A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia

A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total

E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia

A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total

28 abril 2010

118. O nosso amor a gente inventa

Amar o outro é um fim ou um meio? Explico: quando dizemos "eu te amo", estamos querendo, de fato, registrar o sentimento que vai de mim para o outro (fim); ou estamos esperando que o outro também diga "eu te amo" (meio)?
Responder a esta questão implica em complexificar o "eu", ficção da qual somos coautores, pois, a cada instante em que somos confrontados o "eu" se instabiliza. Ora, deste modo, o amor (criação do "eu") também é uma ficção cantada pela linguagem que, por sua vez, cria a realidade.
Sim, é tudo meio confuso e duvidoso, afinal estamos no campo da "mentira", mas, como propõe o pensador Vilém Flusser, estar perdido, de/por amor, é o motor da vida: amar por amar, cantar por cantar, pensar por pensar.
"Amar é verbo intransitivo", como disse Mário de Andrade. Há uma inutilidade na ação. Tudo corre pelo sabor do gesto.
Em "O nosso amor a gente inventa" (Só se for a 2, 1987), o sujeito explode qualquer possibilidade de certeza (de apego improdutivo à liberdade do amor) ao declarar, de cara, saber as engrenagens do troço. Tendo consciência de que o amor é uma encenação (necessária à vaidade), o sujeito canta a dor da morte de algo impronunciável - um troço qualquer - as imagens (mantenedoras das relações) românticas do amor. Daí a bagunça psíquica e física no universo do sujeito.
(Re) inventar o amor (mesmo atravessado por histórias românticas) parece ser o imperativo para este sujeito se manter amando. O amor, para ele, é um meio de vida.

***

O nosso amor a gente inventa (estória romântica)
(Cazuza / Rogério Meanda / João Rebouças)

O teu amor é uma mentira
Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver

Não pode ver que no meu mundo
Um troço qualquer morreu
Num corte lento e profundo
Entre você e eu

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba, a gente pensa
Que ele nunca existiu

O nosso amor a gente inventa, inventa
O nosso amor a gente inventa, inventa

Te ver não é mais tão bacana
Quanto a semana passada
Você nem arrumou a cama
Parece que fugiu de casa

Mas ficou tudo fora do lugar
Café sem açúcar, dança sem par
Você podia ao menos me contar
Uma estória romântica

O nosso amor a gente inventa
Pra se distrair
E quando acaba, a gente pensa
Que ele nunca existiu

27 abril 2010

117. Canto das três raças

Nesta canção, as três raças básicas da formação do Brasil apresentam seu canto. Não apenas o canto enquanto emissão de sons, mas também o canto enquanto espaço físico (os limites de mobilidade de cada raça).
O índio canta, do cativeiro, o soluçar triste de quem teve a liberdade cerceada; o negro, trazido nos porões dos navios da escravidão, ecoam a revolta, do cativeiro (o quilombo não deixa de ser um espaço limitado); e o branco, em especial os inconfidentes, se juntam aos outros dois cantando o desejo de igualdade e fraternidade.
O canto das três raças é, assim, melancólico (pela perda do direito de ser humano: cidadão e sujeito),e dolorido (pela falta de perspectiva de reversão dos desígnos do destino forjado).
Cantada por Clara Nunes (Canto das três raças, 1976) - a personificação do guerreiro sincrético -, a canção condensa os signos de cada cultura a fim de significar a miscigenação (plantada em solo amargo) da raça brasileira.
A atualidade destes elementos primordiais é posta em cena pela presença do trabalhador de hoje: peça nas engrenagens do mercado devorador de almas e corpos. Ícone de "Construção", de Chico Buarque, por exemplo.
O canto das três raças, ou seja, brasileiro, é, portanto, sempre de dor. Em busca permanente de figuras paternas e maternas, das quais o Brasil foi destituído desde sua gênese enquanto nação, a melancolia (o banzo) atravessa a nossa absoluta falta (e desejo) de fraternidade. O coro, algo épico, em ôôô, indicia a força da união das três raças.
Ou seja, enquanto os três tristes tigres (as três raças) continuarem se devorando negativamente entre si, a tristeza não terá fim.

***

Canto das três raças
(Paulo César Pinheiro / Mauro Duarte)

Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil

Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou

Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor

E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador

Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor

26 abril 2010

116. Canção amiga

"Canção amiga" tem o objetivo de ninar as crianças (símbolos do olhar desautomatizado) e acordar os adultos (tomados como detentores de um olhar por demais objetivo).
A "Canção amiga", que fala "como dois olhos", seria, portanto, o grau zero do canto (a tão desejada harmonia do ser). Espaço em que, acima das convenções (de ser e estar), mas conscientes delas, o sujeito pudesse tocar na vida "como quem ama ou sorri". Para que tudo forme um só diamante.
Milton Nascimento (Clube da esquina 2, 1978) aproveita e potencializa a musicalidade do poema de Carlos Drummmond. O compositor usa as redondilhas maiores (versos de sete sílabas) a fim de iluminar as cores das imagens que o texto propõe, ao som, basicamente, do violão.
A canção deflagra a ternura e simplicidade da existência, em contrapartida à complexidade que teimamos em criar.
Tudo na canção amiga (fraternal) é positivo: desde as metáforas solares, até a dicção natural e coloquial (em tom de recado-convite) de Milton Nascimento. O sujeito, ao cantar, torna as palavras mais belas.
Há ainda os singelos vocalizes feitos por crianças, desdobrando a bonita capa do disco e apontando para "o segredo" de algo que está atrás do muro, basta termos coragem para subir nele e olhar.

***

Canção amiga
(Carlos Drummond de Andrade / Milton Nascimento)

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

25 abril 2010

115. Trem das onze

O conjunto vocal Demônios da garoa está nos trilhos da canção há mais de 60 anos (em 1994 entrou para o Guinness Book como o grupo mais antigo em atividade). É um símbolo de São Paulo e seus costumes. O grupo é o melhor intérprete de Adoniran Barbosa e suas canções-crônicas sobre o modo e a cidade paulista. Não à toa,"Saudosa maloca", "Samba do Arnesto" e "Trem das onze", entre tantos outros sucessos ganharam notoriedade pelas originais interpretações do grupo.
Cantando as agruras dos habitantes das periferias paulistas, em especial dos imigrantes italianos e dos caipiras, com seus sotaques singulares, o grupo atravessou gerações unindo a melancolia e a alegria (bom humor e vontade de vencer) dos "desterritorializados" que enchem a megalópole.
É com este mote que podemos ler "Trem das onze" (Trem das onze, 1964). Aqui, um sujeito fora de seu lugar (de Jaçanã), precisa deixar o amor para voltar ao seu lar. O tempo corre contra o desejo de ficar junto. Ele, rapaz de bem (tem mãe e casa para olhar), não pode dormir fora de casa.
Ícones da era da mobilidade, os meios de transporte apontam ora os encontros, ora as despedidas dos sujeitos: "Você entrou no trem e eu na estação" ("Naquela estação", de Adriana Calcanhotto) e "Não posso ficar, se eu perder esse trem" ("Trem das onze") são dois bons exemplos da despedida. Além da impagável "Trem de ferro", música de Tom Jobim sobre poema de Manuel Bandeira.
Além, claro, da tematização do espaço limítrofe, fluido e instável da estação, na "Encontros e despedidas", de Milton Nascimento.
Como hino recorrente nos carnavais, "Trem das onze" pode ser lida também como o canto do folião que, percebendo o tempo que passa (as horinhas de descuido da festa pagã) precisa voltar à vida ordinária (de "bom moço"). O trem das onze antecede, assim, as doze badaladas da terça feira gorda, o fim da folia.

***

Trem das onze (Adoniran Barbosa)

Não posso ficar
Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã

E além disso mulher, tem outras coisas
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar

24 abril 2010

114. Nem eu

Camões cantou que "O amor é fogo que arde e não se sente". Na prática, o amor não deve ser entendido, até porque ele é algo que escapa à qualquer pensamento totalitário, ou à verdade. O amor é mutante e, como canta Zélia Duncan - em "Distração" -, "se você não se distrai o amor não chega".
Ou seja, é no acaso, nas frestas e nos lapsos de atenção que o amor acontece. Portanto, amar não é fazer favor nenhum, pois não há controle sobre o amor.
Claro que esta é uma visão um tanto romântica do amor e das relações que dele surgem, mas é neste mote que nossa canção, em geral, bebe, se embriaga e nos ressaca.
O acaso, como sinônimo de algo mítico e intocável, alimenta as esperanças (por momentos melhores), mas também assusta, daí porque, como Ferreira Gullar já apontou, "o homem sobre a terra luta para neutralizar o acaso". Ou seja, "há um lado carente dizendo que sim e essa vida da gente gritando que não". Desde modo, rimar amor e dor, vira regra.
Quem inventou o amor? Não fui eu nem ninguém. O amor acontece na vida, como canta o sujeito de "Nem eu" (Gal canta Caymmi, 1976 - um dos mais belos discos de nossa canção). Só não se pode deixar que o acaso vire espera e sufoque. Assusta pensar que somos brinquedos nas mãos do acaso, mas, façamos, vamos amar.

***

Nem eu (Dorival Caymmi)

Não fazes favor nenhum
Em gostar de alguém
Nem eu, nem eu, nem eu

Quem inventou o amor não fui eu
Não fui eu, não fui eu
Não fui eu nem ninguém

O amor acontece na vida
Estavas desprevenida
E por acaso eu também
E como o acaso é importante, querida
De nossas vidas a vida
Fez um brinquedo também

Não fazes favor nenhum
Em gostar de alguém
Nem eu, nem eu, nem eu

Quem inventou o amor não fui eu
Não fui eu, não fui eu
Não fui eu nem ninguém

23 abril 2010

113. Elegia

Poeta inglês do século XVII e assombrado pelas conquistas de seu tempo (as grandes navegações e impressão gráfica, por exemplo), John Donne monta o poema "Elegy XIX: Gonig to bed" condensando significantes do corpo feminino à feitura de uma "encadernação vistosa feita para iletrados".
Na tradução de Augusto de Campos - "Elegia: indo para o leito", recolhida no livro O anticrítico - temos desde a figurativização dos embates dos cavaleiros medievais ("Vem dama, vem, que eu te desafio a paz"); passando pela tensão da não-guerra (não sexo), "Canso-me de esperar se nunca brigo"; até a "hora da cama" - "Arranca esta grinalda armada", "a carne em pé" -, sublinhada pelo discurso amoroso enviesado.
Musicado por Péricles Cavalcanti, um fragmento do poema, exatamente o momento do leito, da posse, ganha moldura melódica que tematiza o movimento acelerado das máquinas de tipografia. O sujeito de "Elegia", na música e no texto, finca sua bandeira no novo império: ela, a dama-noiva.
Os avanços e recuos dão o ritmo do canto de um desejo que, a princípio encoberto pelo "cinto sideral", pulsa instigado pelas engrenagens que fazem o "livro místico": a mulher. O sujeito penetra nos mistérios da América (o continente desconhecido,então).
Extasiado, o sujeito sabe que só a ele é dado ler esta mulher-livro e embrenhar-se nesta mulher-terra.
Caetano Veloso (Cinema transcendental, 1979) e Péricles Cavalcanti (Canções, 1991) gravaram "Elegia" marcando melódica e vocalmente os efeitos estéticos exatos: a aceleração e o tema mecânico das máquinas de impressão e dos navios em partida.
Mais tarde, Simone (Simone Bittencourt de Oliveira, 1995) gravou "Elegia" despida das imagens sonoras de Péricles Cavalcanti, infelizmente, empobrecendo os significados com um acompanhamento passional demais para um sujeito (imperador dos mistérios da dama) em pleno êxtase do vislumbre epifânico.

***

Elegia
(Péricles Cavalcanti/Augusto de Campos)
A partir de um poema de John Donne, poeta
do séc. XVII

Deixa que minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, embaixo, entre
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz, se um homem só a conquista

Minha mina preciosa, meu império
Feliz de quem penetre o teu mistério
Liberto-me ficando teu escravo
Onde cai minha mão, meu selo gravo
Nudez total, todo prazer provêm do corpo

(Como a alma sem corpo) sem vestes
Como encadernação vistosa
Feita para iletrados, a mulher se enfeita

Mas ela é um livro místico e somente
A alguns a que tal graça se consente
É dado lê-la
Eu sou um que sabe.

22 abril 2010

112. Uma canção desnaturada

Cantar é dar vida; é criar um suporte para a movimentação do indivíduo. Tal atitude está na nossa gênese: o útero materno (espaço paradisíaco e protetor). Daí se constitui nossa necessidade de música e narrativa: daí a importância da canção popular. Unindo letra (narrativa) e música - itens essenciais à nossa individuação - a canção popular supre necessidades ontológicas.
A voz da mãe, deste modo, cumpre papel fundamental na afirmação da existência do filho. O "simples" fato de ter dentro de si o outro, e cantar (abastecer) este outro, faz da mãe - da relação mãe-bebê - a peça chave de nossa existência. Obviamente, cada caso é um caso e merece ser analisado como tal.
Quando a mãe, portanto, canta uma canção de ninar, por exemplo, está, além de alentando o indivíduo diante do silêncio e da escuridão da noite, oferecendo palavra e melodia no tom de entendimento necessário ao infante (sem fala); estimulando a constituição de um "eu".
Em 1979, Chico Buarque compôs (e interpretou com Marlene), para a trilha de Ópera do malandro, uma canção que, aparentemente, destrói a dialogia harmônica mãe-filho: "Uma canção desnaturada".
Esta canção é um dos mais cruéis cantos de uma mãe, dirigida à filha. Nós, ouvintes, "presenciamos" um aterrador ajuste de contas: uma mãe desgostosa pelo caminho escolhido pela filha renega a cria.
A mãe renega a todo o percurso gerador da curuminha. Olha para a filha agora, adulta, e recua, retroativamente: espalhando versos que apontam o regresso até à escuridão do ventre. O ouvinte entra em viagem vertiginosa. A entoação da voz - pausas dramáticas e acelerações de exasperação - das vozes de Chico e Marlene, em conturbado diálogo, dá o tom da canção, desnaturada.
A voz materna, pela volta no tempo, quer desnaturalizar a criatura que tem diante de si: cindir a progressão natural da existência do outro. Pudesse esta mãe e reverteria o tempo, para vibrar (de alegria) a cada tropeço infantil, a cada choro noturno.
A filha não teria colo, leite, consolo, caso a mãe tivesse o poder de saber no que a cria se tornaria. A curuminha, que hoje sai maquiada dentro do vestido da mãe - rouba para si a figura da mãe: daí a ira da mãe? -, "pelo cordão perdido" seria e é (afinal, "praga" de mãe pega e desconstrói) recolhida à escuridão do ventre de onde não deveria ter saído: viva.

***

Uma canção desnaturada
(Chico Buarque)

Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder

Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim

Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins

Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído

21 abril 2010

111. Todas elas juntas num só ser

O nome da coisa não é a coisa em si. Nomear algo é lança-lo no mundo e, consequentemente, perde-lo. Como sugere Antonio Cícero, "no cofre não se guarda nada, no cofre perde-se a coisa vista". A metáfora pode ser usada para entender o sujeito de "Todas elas juntas num só ser", que não nomeia sua musa. Ela pode estar, neste momento, ao lado do ouvinte, mas ele não saberá.
Para cantar a mulher que detém a superioridade sobre todas as outras, ao concentrar a poética delas, o sujeito circula seu objeto de desejo através de metonímias que homenageiam "todas" as musas da canção popular.
A musa da canção fica intacta. Ela é ela. Sem nome, ela é do sujeito. Pertence a ele, que sabe que, ao não pronunciar o nome dela, a torna infinitamente sua.
Basta lembrar que Julieta ama Romeu porque ele se chama Romeu. Causa, também, da desgraça dos amantes, pois, se Romeu não carregasse o nome (familiar) odiado, o amor poderia ser possível.
O sujeito de "Todas elas juntas num só ser" (Lenine InCité, 2004) sabe ainda que é impossível tratar a coisa em si; que por mais que ele a nomeie, nunca chegará ao que ela lhe representa, ou seja, à singularidade desta mulher. Daí a cadeia de imagem-significantes que dão uma ideia do que ela é para ele.
Ele se perde (e é preciso se perder) no emaranhado de adjetivos traçados pelos grandes cantores (no sentido amplo) para deixar claro o caráter enigmático dela (sua mulher inominável). Ele viola a regra que manda identificar a musa. E ao criar a dúvida, o sujeito preserva, sabiamente, ela (mais que tudo e todas) só para si.

***

Todas elas juntas num só ser
(Lenine / Carlos Rennó)

Não canto mais Bebete nem Domingas
Nem Xica nem Tereza, de Ben Jor;
Nem Drão nem Flora, do baiano Gil;
Não canto mais Luiza, do maior;
Já não homenageio Januária,
Joana, Ana, Bárbara, de Chico;
Nem Yoko, a nipônica de Lennon;
Nem a cabocla, de Tinoco e de Tonico;

Nem a Tigreza nem a Vera Gata
Nem a Branquinha, de Caetano;
Nem mesmo a Linda Flor de Luiz Gonzaga,
Rosinha, do sertão pernambucano;
Nem Risoflora, a flor de Chico Science -
Nenhuma continua nos meus planos.
Nem Kátia Flávia, de Fausto Fawcett;
Nem Anna Júlia, do Los Hermanos.

Só você, hoje eu canto só você;
Só você,
Que eu quero porque quero, por querer.

Não canto de melô Pérola Negra;
De Brown e Herbert, uma brasileira;
De Ari, nem a Baiana nem Maria,
Nem a Iaiá também, nem a Faceira;
De Dorival, nem Dora nem Marina
Nem a morena de Itapoã;
De Vina, a Garota de Ipanema;
Nem Iracema, de Adoniran.

De Jackson do Pandeiro, nem Cremilda;
De Michael Jackson, nem a Billie Jean;
De Jimi Hendrix, nem a Doce Angel;
Nem Ângela nem Lígia, de Jobim;
Nem Lia, Lily Braun nem Beatriz,
Das doze deusas de Edu e Chico;
Até das trinta Leilas de Donato,
E da Layla, de Clapton, eu abdico.

Só você,
Canto e toco só você;
Só você,
Que nem você ninguém mais pode haver.

Nem a namoradinha de um amigo
E nem a amada amante de Roberto;
E nem Michelle-Ma-Belle, do Beatle Paul;
Nem Isabel - Bebel - de João Gilberto;
E nem B.B., La Femme de Serge Gainsbourg;
Nem, de Totó, na Malafemmená;
Nem a Iaiá de Zeca Pagodinho;
Nem a Mulata Mulatinha de Lalá;

E nem a Carioca de Vinicius
E nem a Tropicana de Alceu
E nem a Escurinha de Geraldo
E nem a Pastorinha de Noel
E nem a Namorada de Carlinhos
E nem a Superstar do Tremendão
E nem a Malaguenha de Lecuona
E nem a Popozuda do Tigrão

Só você,
Elejo e elogio só você,
Só você,
Que nem você não há nem quem nem quê.

De Haroldo Lobo com Wilson Batista,
De Mário Lago e Ataulfo Alves,
Não canto nem Emília nem Amélia:
Nenhuma tem meus vivas! E meus salves!
E nem Angie, do Stone Mick Jagger;
E nem Roxanne, de Sting, do Police;
E nem a Mina do Mamona Dinho
E nem as Mina - pá! - do Mano Xis!

Loira de Hervê e Loira do É o Tchan,
Lôra de Gabriel, o Pensador;
Laura de Mercer, Laura de Braguinha,
Laura de Arnaut Daniel, o trovador;
Ana do Rei e ana de Djavan,
Ana do outro Rei, o do baião:
Nenhuma delas hoje cantarei:
Só outra reina no meu coração.

Só você,
Rainha aqui só você,
Só você,
A musa dentre as musas de a a z.

Se um dia me surgisse uma dessas
Moças que, com seus dotes e seus dons,
Inspiram parte dos compositores
Na arte das palavras e dos sons,
Tal como Madelleine, de Jacques Brel,
Ou como Madalena, de Martinho;
Ou Mabellene e a Sixteen de Chuck Berry,
E a manequim do tímido Paulinho;

Ou como, de Caymmi, a Moça Prosa
E a musa inspiradora Doralice;
Se me surgisse apenas uma dessas,
Confesso que eu talvez não resistisse;
Mas, veja bem, meu bem, minha querida:
Isso seria só por uma vez,
Uma vez só em toda a minha vida!
Ou talvez duas... Mas não mais que três

Só você
Mais que tudo é só você;
Só você
As coisas mais queridas você é:

Você pra mim é o sol da minha noite;
É como a Rosa, luz de Pixinguinha;
É como a estrela pura aparecida,
A estrela a refulgir, do Poetinha;
Você, ó flor, é como a nuvem calma
No céu da alma de Luiz Vieira;
Você é como a luz do sol da vida
De Stevie Wonder, ó minha parceira.

Você é para mim e o meu amor,
Crescendo como mato em campos vastos,
Mais que a Gatinha para Erasmo Carlos;
Mais que a Cigana pra Ronaldo Bastos;
Mais que a divina dama pra Cartola;
Que a domna para Ventadorn, Bernart;
Que a Honey Baby para Waly Salomão
E a Funny Valentine pra Lorenz Hart.

Só você,
Mais que tudo e todas, só você;
Só você,
Que é todas elas juntas num só ser.

20 abril 2010

110. Desabafo

Desde "Blue gardenia", Cauby Peixoto é um ídolo. Mestre da voz e do marketing, o cantor de "Conceição" e "Bastidores" mantem o timbre exato de um muso popular. A voz se derrama e preenche espaços profundos em quem a escuta.
Em tom mais grave que o habitual, Cauby interpreta Roberto (2009) é a mais perfeita tradução do que pode a voz de Cauby: a paixão exposta (em alongamentos e brevidades precisos).
O repertório do disco parece ter sido composto para sua voz. Os versos ficcionais soam "reais" e próximos de quem os ouve. Cauby canta no timbre certo para ser recebido com empatia pela paixão e pela subjetividade do ouvinte.
"Desabafo" é avassaladora. Um acompanhamento de tango (dança para ser executada a dois) põe o sujeito da canção e o receptor em compasso binário (frente a frente). Habilidades e movimentos complexos de atração e retração - marcados pela melodia, pelo texto ("Você é mesmo essa mecha de branco nos seus cabelos", "mas acontece que eu não sei viver sem você") e pela voz de Cauby - arrastam os corpos dos parceiros, enquanto o sujeito discute a relação e responsabiliza o outro pelas torturas de amor.
Uma coreografia doída e triste, mas também agressiva e sexual, é apresentada ao ouvinte que fica exposto diante do embate (show) amoroso e rígido dos sujeitos da canção.

***

Desabafo (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)

Por que me arrasto aos seus pés
Por que me dou tanto assim
E por que não peço em troca
Nada de volta pra mim?

Por que é que eu fico calado
Enquanto você me diz
Palavras que me machucam
Por coisas que eu nunca fiz?

Por que é que eu rolo na cama
E você finge dormir?
Mas se você quer eu quero
E não consigo fingir

Você é mesmo essa mecha
De branco nos seus cabelos
Você pra mim é uma ponta
A mais nos meus pesadelos

Mas acontece que eu
Não sei viver sem você
Às vezes me desabafo
Me desespero porque

Você é mais que um problema
É uma loucura qualquer
Mas sempre acabo em seus braços
Na hora que você quer

Você é mais que um problema
É uma loucura qualquer
Mas sempre acabo em seus braços
Na hora que você quer

19 abril 2010

109. José

É praticamente impossível ler o poema "José", de Carlos Drummond de Andrade, sem que a canção de Paulo Diniz (E agora, José?, 1973) apareça e conduza nossa leitura. O fato é que a canção, pelo apelo popular que a maioria das canções tem, entrou para o inconsciente coletivo e força nossa perspectiva.
No entanto, há que fazermos, pelo menos, uma ressalva à música que Paulo Diniz criou para o poema: O tom alegre demais (do acompanhamento melódico) para um texto de tom interrogativo-introspectivo.
O José do poema é uma metáfora do povo diante das agruras (perdas e danos) da condição de ser brasileiro. E a melodia parece "zombar" das desgraças (falta de passado-presente-futuro) de José, ao caminhar por uma imagem festiva. A musicalidade abranda o significado.
Na canção, a pergunta cíclica - "e agora, José?" - perde o vigor rítmico já expresso no poema (cheio de redondilhas). O fundo político se esvai, já que texto e melodia não se encontram. A radicalização dos questionamentos (tudo é posto em dúvida e em suspensão) não tem eco na música. Apesar da voz de Paulo Diniz trabalhar sobre certa agonia - "não veio a utopia e tudo acabou".
Paulo Diniz musicou outros poemas - de Gregório de Matos, "Definição do amor"; de Augusto dos Anjos, "Versos Íntimos"; de Jorge de Lima, "Essa nega fulô"; e de Manuel Bandeira, "Vou-me embora pra Passárgada", por exemplo. Mas isso são outras histórias.

***

José
(Carlos Drummond de Andrade / Paulo Diniz)

E agora, josé?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, josé?
E agora, você?
Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama, protesta?
E agora, josé?

Está sem mulher,
Está sem carinho,
Está sem discurso,
Já não pode beber,
Já não pode fumar,
Cuspir já não pode,
A noite esfriou,
O dia não veio,
O bonde não veio,
O riso não veio
Não veio a utopia
E tudo acabou
E tudo fugiu
E tudo mofou,
E agora, josé?

Sua doce palavra,
Seu instante de febre,
Sua gula e jejum,
Sua biblioteca,
Sua lavra de ouro,
Seu terno de vidro,
Sua incoerência,
Seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
Quer abrir a porta,
Não existe porta;
Quer morrer no mar,
Mas o mar secou;
Quer ir para minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
Se você gemesse,
Se você tocasse
A valsa vienense,
Se você dormisse,
Se você cansasse,
Se você morresse...
Mas você não morre,
Você é duro, josé!

Sozinho no escuro
Qual bicho-do-mato,
Sem teogonia,
Sem parede nua
Para se encostar,
Sem cavalo preto
Que fuja a galope,
Você marcha, josé!
José, para onde?

18 abril 2010

108. Nervos de aço

A princípio, o sujeito de "Nervos de aço" parece assumir que não é um exemplo do super-homem nietzschiano. Há pessoas que são, ele não. Porém, o fato dele cantar a dor aponta para outras leituras.
Para Nietzsche (na obra Assim falou Zaratustra), o homos superior (ou super-humano) é, basicamente, aquele que transvaloriza os valores individuais; supera o velhos ideais e cria novos; e está em contínuo processo de superação.
Numa primeira leitura-audição, o sujeito de "Nervos de aço", ao contrário, passando o que ele passa, tem desejos de morte ou de dor.
Acompanhado pela Orquestra Tabajara, Jamelão traz para a interpretação de "Nervos de aço" (Jamelão interpreta Lupicínio, 1972) a dicção malandra da gafieira, dando à canção um colorido melancólico, mas festivo - desde que o samba é samba é assim. Diferente, por exemplo, da versão de Paulinho da Viola, mais atenta à letra e, portanto, mais passional.
Jamelão, contrariando o sujeito da canção, estabelece "a eterna, suprema afirmação e confirmação da vida", como Nietzsche (inspirado pelo romantismo alemão) previa que o super-homem faria. Ele diz sim à vida.
Para o sujeito desenhado pela voz de Jamelão, a profundidade da letra, não passa de um jogo da superfície. Profundidade e superfície se misturam para tencionar os limites que o super-homem transpõe.
Há vida além do amor. O sujeito de "Nervos de aço", no fundo, mostra isso. O desejo de morte é superado e surge o canto. Cantar é colocar-se acima das regras; é olhar para o futuro; é transcender o desejo de dor; e continuar vivendo.

***

Nervos de aço (Lupicínio Rodrigues)

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Ao lado de um tipo qualquer
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do seu pode ser

Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor

17 abril 2010

107. Pros que estão em casa

"Pros que estão em casa" é uma mensagem (de náufrago) para os que estão dentro de suas cascas (cavernas) existenciais. Espaço onde o sol não entra, pois as janelas estão fechadas e, ressacados (de vida) os olhos se tornaram sensíveis demais ao brilho.
O sujeito passou a noite esperando por um telefonema que não veio (nem mesmo um sinal de fumaça). Ele busca subterfúgios para lidar com o fato do (auto)abandono - não tomar café, nem escovar os dentes. Ele canta a si mesmo, na esperança de que o amor dê em alguma coisa (ao menos o eriço das sobrancelhas - metáfora arrebatadora). Ou seja, de que suas investidas fora da caverna não sejam em vão.
O sol queima na praça, mas o sujeito, sem graça, fica recolhido em sua (in)significância, pois não reconhece nas imagens (sombras) que lhe aparecem nas paredes pardacentas qualquer vestígio de vida mais real. Frente ao tempo que não para - Bom dia, boa tarde, good night - a fuga; o deslizamento para regiões internas. Sempre para dentro.
O timbre (quase) operístico da voz de Toni Platão empresta a dicção grandiloquente que a gravação (Pros que estão em casa, 2009) precisa para cantar este sujeito que finda por ir indo tendo aguardentes e tapas para sustentar sua viagem ao centro de si.

***

Pros que estão em casa
(Rômulo Portella / Flávio Murrah)

Até bem cedo
Esperei pelo telefonema
Tapando com peneira
O sol que vai nascendo

Não vou tomar café
Nem escovar os dentes
Vou de aguardente
Como o sol que queima a praça

Bom dia, boa tarde
Good night, quero dar um tapa
De topete e cara
Vi Nova York internada

E meu amor nao deu em nada
Nem sobrancelhas eriçadas
E a essa altura do fato
Nem fumaça tem cano de descarga

16 abril 2010

106. A fórmula do amor

O rock brasileiro, salvo alguns casos, deglutiu as matrizes e criou um som mais leve: tanto na pegada harmônica, quanto na temática das letras. O ritmo, por aqui, acabou se aproximando daquilo que, de forma geral e genérica, entendemos como canção, ou rock-canção.
Porém, há quem aponte diferenças entre o rock paulista e o carioca, por exemplo. Este último denominado - pejorativamente, ou não - de "rock de (das) bermudas". Exatamente pela verve do bom humor, do deboche e dos causos da juventude praieira, cantada nas letras. Portanto, uma pegada mais solar.
Lançada no disco Sessão da tarde (1985), "A fórmula do amor" marca com graça essa veia mais suave do BRock. Mesmo Leo Jaime flertar com o básico do ritmo. Aliás, daí a importância de seu trabalho: sempre em busca da fórmula perfeita.
O sujeito de "A fórmula do amor" - embalado pela melodia de pulsação marcada, mas aerada - representa o momento em que, apaixonados, fazemos de tudo para impressionar nosso objeto de desejo.
Criar o cenário perfeito, a pose exata e o charme certo faz parte das descobertas do sujeito, e também é algo que ronda as memórias afetivas do ouvinte, daí a empatia com a canção.
É sempre bom lembrar que Leo Jaime e Leoni são alguns dos artistas da chamada geração 80 que continuam pensando os rumos da canção no Brasil.

***

A fórmula do amor
(Leo Jaime / Leoni)

Eu tenho o gesto exato, sei como devo andar
Aprendi nos filmes pra um dia usar
Um certo ar cruel de quem sabe o que quer
Tenho tudo planejado pra te impressionar

Luz de fim de tarde, meu rosto em contra-luz
Não posso compreender não faz nenhum efeito
A minha aparição, será que errei na mão
As coisas são mais fáceis na televisão

Mantenho o passo, alguém me vê
Nada acontece não sei porque
Se eu não perdi nenhum detalhe
Onde foi que eu errei

Ainda encontro a fórmula do amor

Eu tenho a pose exata pra te fotografar
Aprendi nos livros pra um dia usar
Um certo ar cruel de quem sabe o que quer
Tenho tudo ensaiado pra te conquistar

Eu tenho um bom papo e sei até dançar
Não posso compreender, não faz nenhum efeito
A minha aparição, será que errei na mão
As coisas são mais fáceis na televisão

Eu jogo um charme alguém me vê
Nada acontece não sei porque
Se eu não perdi nenhum detalhe
Onde foi que eu errei

Ainda encontro a fórmula do amor

15 abril 2010

105. Gita

Para Erivaldo Martins

Bhagavad Gītā ("Canção de Deus") é o texto sagrado hindu. É o importante diálogo entre Krishna e o discípulo Arjuna, que procura a auto realização.
"Gita", a canção, apresenta um sujeito (inspirado pelo livro) que expõe suas inquietações interiores.
Na clássica interpretação de Raul Seixas (Gita, 1974), temos um sujeito cancional em estado quase passional (mas, vez ou outra, exaltado), usando o poder de síntese da frase poética para dizer aquilo que lhe vai à alma.
O "eu" fala se afirmando como aquilo que vai da luz ao medo, passando pelo sacrifício. A tese, a antítese e a síntese.
Na interpretação de Maria Bethânia (Imitação da vida, 1997), o sujeito canta em tom mais irado. Bethânia usa as alturas melódicas (acima das usadas por Raul) para figurar (e exaltar) as auto afirmações - Eu sou!.
Obviamente, a pegada harmônica, na versão de Bethânia, é bastante volumosa (há uma pulsação perene e forte). Aliás, a impressão é de um canto "à beira do abismo"; de um canto que a qualquer momento irá violentamente se calar. Em contrapartida da baladinha gostosa (e de tom profético-apocalíptico) usada de modo sublime por Raul.
Não esqueçamos que "o andamento é o tempo qualificado", como sugere Alfredo Bosi (O ser e o tempo da poesia). Assim, a melhor chave para a leitura das diferentes interpretações está no final da canção.
Ao invés de - quando canta "o início, o fim e o meio" - usar a descendente (como Raul faz) ao dizer "o meio", Bethânia usa a ascendente-suspensiva. Isso altera radicalmente o sentido. A canção fica em aberto, como a vida que não tem fim; como a incompletude do sujeito.
O jogo das alturas entoativas aponta para um sujeito que "vai", portanto, "o meio" (desenhado por Bethânia), em contrapartida ao sujeito que "foi", portanto, "o fim" (desenhado por Raul).
"A entoação desvela os movimentos da alma", como Bosi também aponta. Ao final, as duas interpretações são (algo) complementares. Cada qual potencializando diferentes ênfases da mensagem do texto e iluminando outros (des)vãos do "eu".
.
Na letra a seguir estão apenas as estrofes cantadas por Maria Bethânia:

***

Gita (Raul Seixas / Paulo Coelho)

Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada
Nem fico sorrindo ao teu lado

Você pensa em mim toda hora
Me come, me cospe, me deixa
Talvez você não entenda
Mas hoje eu vou lhe mostrar

Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o mêdo de amar

Eu sou o medo do fraco
A força da imaginação
O blefe do jogador
Eu sou, eu fui, eu vou

Eu sou o seu sacrifício
A placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição

Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada

Por que você me pergunta
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra

14 abril 2010

104. Socorro

"Socorro", como a própria palavra encerra, é uma súplica por auxílio; um pedido de ajuda para resolver algo; ou, no caso, para suportar o peso da existência.
O sujeito da canção, desnudado de qualquer vaidade humana, roga por algo que lhe dê sentido à vida (tão fria e sem desejo).
Quando os sentidos se ausentam; quando nada mais tem valor ou importância; quando o coração já não consegue mais bater por nenhuma razão; quando nada mais é motivo de surpresa; e quando as penas de uma alma penada podem servir de abrigo para o frio interior do sujeito; a urgência da vida precisa ser alardeada.
Como qualquer pedido de socorro, a mensagem da canção é direta, para que não ocorram erros da parte de quem queira lhe estender a mão. É preciso apontar o que nos dói, para que sejamos (esta é a esperança no grito do desesperançado) socorridos.
Cássia Eller (que já havia gravado a canção em Cássia Eller, 1994) regravou "Socorro" no Cássia Eller Ao vivo (1996) com uma pegada algo asmástica do violão. Ou seja, a melodia aos soluços se une ao texto, na busca de apontar uma rua que leve o sujeito a algum lugar que o proteja da incomensurável solidão de ser sozinho e humano.

***

Socorro (Arnaldo Antunes / Alice Ruiz)

Socorro, não estou sentindo nada.
Nem medo, nem calor, nem fogo,
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir.

Socorro, alguma alma, mesmo que penada,
Me empreste suas penas.
Já não sinto amor nem dor,
Já não sinto nada.

Socorro, alguém me dê um coração,
Que esse já não bate nem apanha.
Por favor, uma emoção pequena,
Qualquer coisa.

Qualquer coisa que se sinta,
Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva.

Socorro, alguma rua que me dê sentido,
em qualquer cruzamento,
acostamento,
encruzilhada,
Socorro, eu já não sinto nada.

Socorro, não estou sentindo nada.

13 abril 2010

103. Sem saída

Para Alda

"Quando foi lançada, o que mais chamou a atenção na poesia concreta foi o aspecto visual, mas tudo começou com música", afirma Augusto de Campos, um dos inventores.
A Poesia Concreta começou com música, pela ênfase no canto não "operístico" e pela substituição da declamação pelo que os concretistas chamaram de oralização. E a informação musical formou a poesia que pretendia ser “verbivocovisual”.
O fato é que as inovações da Poesia Concreta fizeram (e fazem) a cabeça sonora de vários cancionistas. Eles (e entre eles Adriana Calcanhotto se destaca) mostram que Poesia Concreta pode sim ser ouvida, falada ou cantada.
"Sem saída" (poema de Augusto, musicado por Cid Campos) está no disco Maré (2008), de Adriana. O poema (vide vídeo) apresenta um embaralhado de versos, identificados por cores individuais. Tal recurso desdobra a ideia de impossibilidade de saída. As curvas (que encantam o olhar) arrastam o fruidor para um labirinto de cor e imagem.
O sujeito parece desencantado com a existência (a estrada é muito comprida, não posso voltar atrás, nunca saí do lugar). Porém, "curvam enganam o olhar" e são a possível saída - o avesso.
A saída, portanto, está em encarar a (des)orientação estabelecida pelas curvas. Se elas fazem o sujeito se perder no labirinto, elas permitem que este sujeito se desdobre para dentro de si - se encontrando e encontrando a saída almejada.
A estrada "sem saída" é desenhada por curvas e, se "curvas enganam o olhar", a saída é uma questão de perspectiva.
A melodia iconiza a peleja do sujeito e a voz de Adriana (suave e terna) ilumina o cansaço de quem andou e não saiu do lugar.
.
O poema na interpretação de Cid Campos (Fala da palavra, 2004):



***

Sem saída (Augusto de Campos / Cid Campos)

A estrada é muito comprida
O caminho é sem saída
Curvas enganam o olhar
Não posso ir mais adiante
Não posso voltar atrás
Levei toda a minha vida
Nunca saí do lugar

12 abril 2010

102. Acontecimentos

Para Diogo Barros

No livro O rumor da língua, Roland Barthes observa que "descrever o acontecimento implica que este tenha sido escrito". E pergunta: "O que pode querer dizer 'a escrita do acontecimento'?"
Em "Acontecimentos" (Marina Lima, 1991), Marina Lima e Antônio Cícero constroem um sujeito que, na impossibilidade de descrever um acontecimento, afinal a festa é no outro apartamento, circula o desejo da descrição com a exposição de sentimentos tão íntimos quanto coletivos (as estruturas simbólicas por trás dos acontecimentos): o amor, seus tédios e seus ciúmes.
A solidão do sujeito da canção (amplificada pelo tom suave, passional e direto da voz de Marina) confirma que "nada privado de sentido pode ser captado". Ou seja, o brilho do amor, em si, é o acontecimento, violentamente indescritível. Assim, como o fato de um amante estar longe do outro.
Há uma "rede de marcas" impossíveis de serem compreendidas pelo sujeito. Não há escrita. Daí as perguntas que cortam a canção. E, o mais importante, daí o canto que ordena (dionisiacamente) o que se prende e o que foge do sujeito.
Frustrado, mas não privado de si mesmo e, portanto, da escrita e do autocanto, ele inventa álibis e recusas para estabelecer o escrito (o texto) e seu "contrário" (o canto) - aquilo que é destacado da verdade da palavra escrita.

***

Acontecimentos (Marina Lima / Antonio Cicero)

Eu espero
Acontecimentos
Só que quando anoitece
É festa no outro apartamento

Todo amor
Vale o quanto brilha
E aí
O meu ainda brilhava
Brilho de jóia e de fantasia

O que que há com nós dois, amor?
Me responda depois
Me diz por onde você me prende
Por onde foge
E o que pretende de mim

Era fácil
Nem dá pra esquecer
E eu nem sabia
Como era feliz de ter você

Como pôde
Queimar nosso filme
Um longe do outro
Morrendo de tédio e de ciúmes

O que que há com nós dois amor?
Me responda depois
Me diz por onde você me prende
Por onde foge
E o que pretende de mim

11 abril 2010

101. Errei, sim

Ataulfo Alves teve canções (sambas, na maioria) gravados por Almirante, Carmen Miranda, Carlos Galhardo e Sílvio Caldas, entre outros. Além de ter sido um competente intérprete e instrumentista.
De fato, o grupo Ataulfo Alves e suas pastoras eternizou o rítmo em tom menor do Brasil. O que rendeu a Ataulfo o epíteto de General do samba.
É dele, por exemplo, em parceria com Mário Lago, a impagável "Ai meu Deus que saudade da Amélia". A mulher ideal.
Mas há ainda "Na cadência do samba", "Laranja madura", "Eu não sou daqui", "Fim de Comédia", "Vai, mas vai mesmo" e "Mulata assanhada", entre tantos outros sambas indispensáveis para a nossa história da canção.
"Errei, sim" foi gravada por Dalva de Oliveira durante a polêmica separação dela com Herivelto Martins. Com a gravação, Dalva parecia querer se desnudar diante do público.
Fofocas à parte, a canção traz a orgia (sempre ela! - que está presente, por exemplo, em "Oh! Seu Oscar", de Ataulfo e Wilson Batista) como causa do erro cometido pelo sujeito.
A mensagem da letra parece ser uma resposta da Amélia que, abandonada e esquecida, se enche do desamor e vai à luta, manchando o nome do marido.
A voz da canção é persuasiva - se coloca na defensiva - e ainda pede para que (quem não tenha pecado) lhe "Atire a primeira pedra" (título de outro samba de Ataulfo).
Enfim, quem nunca sofreu por amor, pode atirar.

***

Errei, sim (Ataulfo Alves)

Errei, sim
Manchei o teu nome
Mas foste tu mesmo
O culpado
Deixavas-me em casa
Me trocando pela orgia
Faltando sempre
Com a tua companhia

Lembra-te, agora, que não é
Só casa e comida
Que prende por toda a vida
O coração de uma mulher

As jóias que me davas
Não tinham nenhum valor
O mais caro me negavas
Que era todo o teu amor
Mas, se existe ainda
Quem queira me condenar
Que venha logo
A primeira pedra
Me atirar

10 abril 2010

100. Ronda

"Ronda" é um clássico da boemia paulista, e universal. A canção fotografa a noite vazia de um sujeito entregue ao abandono. E o interessante é que só no último verso temos a marca de que a cena se passa em São Paulo.
A letra e a melodia arrastada iconizam a fossa do sujeito - ícone, aliás, registrado na concepção da capa do disco de Márcia (Ronda, 1977).
Márcia - com a escola do canto das casas noturnas - força nos alongamentos vocálicos e no timbre abatido, a fim de materializar a dor do sujeito da canção e deixa-la o mais próximo possível do ouvinte.
A ronda noturna, movida a bebidas (de bar em bar), é a metáfora da obsessão de um sujeito que não tem quem o quer. Eis o motivo clássico para o porre boêmio, eternizado por Paulo Vanzolini.
Apenas o sonho é capaz de unir o sujeito ao seu objeto de desejo. No caso, podemos pensar que é a própria canção que faz os dois se aproximarem. Porém, acordado, o sujeito percebe a verdade desilusória e sai à busca (inútil ou não) do outro.
O crime passional, ápice do desespero de quem não compreende a impossiblidade do amor, também aponta para a passionalização que atravessa toda a canção.
A cena de sangue é a representação de algo que mina e perfura do coração do sujeito: "te procurar sem encontrar".

***

Ronda (Paulo Vanzolini)

De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está
Volto pra casa abatida
Desencantada da vida
O sonho alegria me dá
Nele você não está

Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, esta busca é inútil
Eu não desistia

Porém, com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar

E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João

09 abril 2010

99. Nossa canção

Para Paulo Vinícius

Há canções que tematizam o próprio ato de compor e/ou discutem a canção dentro da canção. Podemos, grosso modo, chamá-las de metacanções. O verso "Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião", de "Baião", de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga; e "Essa canção é só pra dizer e diz", de "Você é linda", de Caetano Veloso, são exemplos evidentes e didáticos.
"Nossa canção" também pode ser analisada por essa perspectiva. O sujeito atenta para a singularidade da canção que é deles (dos amantes), mas que também é nossa (dos ouvintes). Visto que, sem marcadores de gênero ou temporal, "Nossa canção" pode ser cantada (seja onde for) por qualquer um que queira encantar e registrar o amor.
Interessante que o sujeito, ao cantar, exige a atenção de um sentido para além do ouvido: o olhar. Isto aponta, provocativamente, para o efeito sinestésico buscado pelo sujeito.
"Nossa canção" já teve várias interpretações. Vanessa da Mata (Vanessa da Mata, 2002) valoriza a singeleza do discurso. Acompanhada pelo belo e corretíssimo acordeom de Marcelo Jeneci, Vanessa resgata e presentifica um cancioneiro algo interiorano (de imagética sertaneja e caipira).
"Nossa canção" flui como memória (você partiu e me deixou) e reafirmação (até você voltar eu vou cantar) do amor. O canto aquece o espaço deixado por alguém ausente. Cantamos para estar perto; e para conseguir seguir: cantando.

***

Nossa canção (Luiz Ayrão)

Olha aqui,
Preste atenção
Essa é a nossa canção
Vou cantá-la seja aonde for
Para nunca esquecer o nosso amor
Nosso amor

Veja bem
Foi você
A razão e o porquê
De nascer esta canção assim
Pois você é o amor que existe em mim

Você partiu e me deixou
Nunca mais você voltou
Pra me tirar da solidão
E até você voltar
Meu bem eu vou cantar
Essa nossa canção

08 abril 2010

98. Ela só pensa em beijar

Regravar uma canção não é fácil. Há inúmeros elementos (tais como timbres, conjunções de instrumentos e intenções) que, uma vez no inconsciente coletivo, devido à primeira versão, dificultam a (nova) empatia dos fruidores. Cabe ao cantor inventar sobre as possibilidades que a canção lhe oferece.
Mais difícil, porém, é regravar alterando o ritmo original. E é justamente o que Celso Fonseca (Feriado, 2007) faz com o funk "Ela só pensa em beijar". Não é a primeira vez que Celso Fonseca flerta com o funk. Em "Valeu" (2001), por exemplo, ele canta "Sim, valeu tirar no violão 'Love só love'".
Em "Ela só pensa em beijar", Celso muda a tessitura melódica e o desenho da performance vocal oferecendo outras cores ao sucesso chapa quente de MC Leozinho. Ele usa uma base eletrônica para marcar o balanço da menina, mas a dicção (slow motion bossa nova) registra o êxtase do sujeito diante da girl from Ipanema.
O resultado é pura leveza. O ouvinte, seduzido pela imagem da menina (fascinante e beijoqueira), deseja o desejo do sujeito. Afinal, se ela dança, ele dança e nós dançamos juntos.
O beijo é, portanto, o resultado do jogo amoroso e da luta corporal dos amantes.

***

Ela só pensa em beijar (Leozinho)

Se ela dança eu danço
Se ela dança eu danço
Se ela dança eu danço
falei com o DJ
pra fazer diferente botar chapa quente pra gente dançar
Me diz quem é a menina que dança e fascina,que alucina querendo beijar

Se ela dança eu danço balancei no balanço nesse doce encanto que me faz cantar
que é quando eu te vejo,desperta o desejo,eu lembro do seu beijo e não paro de sonhar

Ela só pensa em beijar,beijar,beijar,beijar
E vem comigo dançar,dançar,dançar,dançar

Vem viver esse sonho,eu te proponho até suponho vai se apaixonar
por essa alegria que contagia
A melodia que te faz dançar
Eu viajei no teu corpo
descobri o teu gosto
deslizei no seu rosto só pra te beijar
dê uma chance quem sabe esse lance
vai virar um romance e a gente vai namorar

07 abril 2010

97. Batuque na cozinha

No livro O mistério do samba, Hermano Vianna investigar o deslizamento do samba de "cultura popular" à posição de "cultura nacional". O autor mira sua escrita no som que, vindo da cozinha (metáfora para o lugar do negro e mestiço, de então), encantou as salas das casas grandes. Dito assim, parece fácil, mas não foi e Vianna aponta isso: a crise e o mistério.
O espanto e a rejeição causados pelo surgimento do samba, pode ser ouvido, por exemplo, em "Pra que discutir com madame", de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida. Mas, se aqui a madame pode ser identificada como a crítica Magdala da Gama de Oliveira (a Mag), pelo desprezo que ela imprimia ao ritmo, em "Batuque na cozinha" temos referências aos primórdios da mistura e da hostilização, de forma mais coloquial e generalizada.
João da baiana, contemporâneo de Donga, Pinxinguinha e Heitor dos Prazeres, entre outros, faz parte da gênese da nossa canção popular mestiça. O apelido não é mera brincadeira. Ele levou o pandeiro (além de usar o prato e a faca) para as batucadas de roda e jogou seu tempero no caldeirão cultural do Brasil.
"Batuque na cozinha" (Gente da antiga, 1968) tenciona o radicalismo conservador (que não quer se misturar) e a irresistível hibridação da cultura de massa brasileira. João morreu (pasmem!) praticamente esquecido, mas teve papel importante no nosso furdunço.

***

Batuque na cozinha (João da Baiana)

Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei o pé

Então não bula na cumbuca
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato

Eu fui na cozinha
Pra ver uma cebola
E o branco com ciúme
De uma tal crioula

Deixei a cebola, peguei a batata
E o branco com ciúme de uma tal mulata
Peguei o balaio pra medir a farinha
E o branco com ciúme de uma tal branquinha

Batuque na cozinha

Eu fui na cozinha pra tomar o café
E o malandro ta de olho na minha mulher
Mas, comigo eu apelei pra desarmonia
E fomos direto pra delegacia
Seu comissário foi dizendo com altivez
E da casa de cômodos da tal Inês
Revistem os dois, botem no xadrez
Malandro comigo não tem vez

Batuque na cozinha

Mas seu comissário
Eu estou com razão
Eu não moro na casa de arrumação
Eu fui apanhar o meu violão
Que estava empanhado com Salomão
Eu pago a fiança com satisfação
Mas não me bota no xadrez
Com esse malandrão
Que faltou com respeito a um cidadão
Que é Paraíba do Norte, Maranhão

06 abril 2010

96. Debaixo d'água

A introdução percussiva (algo baladinha de ninar) e um canto de sereia abrem e atravessam "Debaixo d'água", canção que Arnaldo Antunes gravou em Paradeiro (2001) e Maria Bethânia em Mar de Sophia (2006).
A melodia despoleta a mensagem de um paraíso líquido. Longe do caos da vida na superfície, o colorido, sem lamento e sem saber, sem perdão e sem percado (afinal um depende do outro para
existir), o fundo do mar (de sofia), de águas que lavam as mazelas do mundo, surge como estado de graça.
Porém (ah, porém), este ponto zero do ser resulta tão sufocante quanto o ar (poluído) e o sujeito precisa emergir para respirar. Ou seja, não há esfera de proteção isenta de ser explodida por pressões intrínsecas à condição humana. A serpente bíblica parece se metamorfosear a todo instante.
É debaixo d'água - dentro da barriga materna, nossa primeira esfera protetora - que o sujeito se forma. O estouro da bolsa é nosso primeiro contato com o ar; e nossa expulsão do paraíso. Ao longo da vida, passamos a criar e recriar bolhas de proteção, sempre frágeis e de curtíssima duração.
Se recolher para sempre, à escuridão do ventre (sereno confortável amado completo), de onde (talvez) não deveria nunca ter saído, eis o desejo (inconfesso) do ser.

***

Debaixo d'água (Arnaldo Antunes)

Debaixo d'água tudo era
mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água
se formando
como um feto
sereno confortável
amado completo
sem chão sem teto
sem contato com o ar

Mas tinha que respirar

Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Debaixo d'água por encanto
sem sorriso e sem pranto
sem lamento e sem saber
o quanto esse momento
poderia durar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água ficaria
para sempre
ficaria contente
longe de toda gente
para sempre
no fundo do mar

Mas tinha que respirar

Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

Debaixo d'água
protegido salvo
fora de perigo aliviado
sem perdão e sem pecado
sem fome sem frio
sem medo
sem vontade de voltar

Mas tinha que respirar

Debaixo d'água tudo era
mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar

Mas tinha que respirar

Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia

05 abril 2010

95. Eu vou tirar você desse lugar

Definir uma canção como "brega" ou "cafona" é mais cafona que a (suposta) cafonice apontada. Além de simplista, a definição, no mais das vezes, esconde o preconceito e a preguiça de pensar sobre aquele tipo de canção que não passa pelo cânone estabelecido por um grupo que, em quase nada, representa o todo.
Dito isso, é preciso observar como o brega virou cult. Saiu dos puteiros para as baladas dos moderninhos. O interesse pelo estilo pop-chiclete, com as regravações estilosas, estão aí para provar.
Em "Eu vou tirar você desse lugar", Odair José (corajoso autor de "Pare de tomar a pílula") tem a ousadia luminosa de cantar o amor entre um cara qualquer e uma prostituta. Claro, há outras interpretações. Mas aqui, podemos ler um sujeito que vai até o local de trabalho de sua amada e canta seu amor, sem medo. Canta a vontade de lhe dar uma outra vida.
Ora, assumir a paixão (a inclinação sexual) por uma prostituta, em épocas de ditaduras e imposição de certa moral, é (sempre) extremamente revolucionário.
A empatia foi instantânea. Não só as moradoras dos bordéis, mas também as classes mais oprimidas, usaram a canção de Odair como hino do desejo por dias melhores. E a canção se tornou um clássico (!) do povão.
O Los Hermanos (ao regravar a canção para a trilha sonora do filme A taça do mundo é nossa (2003)) tentou, com sucesso, manter o tom direto e afetivo-rasgado da versão de Odair José. Os meninos mantiveram o clima e o sabor do gesto (com voz algo chorosa e acompanhamento lento), para apresentar a mensagem ao (novo) público.

***

Eu vou tirar você desse lugar
(Odair José)

Olha, da primeira vez que eu estive aqui
foi pra me distrair
eu vim em busca de amor

Olha, foi então que eu te conheci
naquela noite fria
nos seus braços os problemas esqueci

Olha, da segunda vez que eu estive aqui
Já não foi pra me distrair
eu senti saudades de você

Olha, eu precisei dos seus carinhos
Eu me sentia tão sozinho e já não podia mais te esquecer

Eu vou tirar você desse lugar
Eu vou levar você pra ficar comigo
E não me interessa o que os outros vão pensar

Eu sei que você tem medo de não dar certo
Acha que o passado vai estar sempre perto
E que um dia eu vou me arrepender

Eu quero que você não pense em nada triste
porque quando o amor existe
o que não existe é tempo pra sofrer

04 abril 2010

94. Baião de dois

O prato regional "Baião de dois" tem este nome por unir o feijão verde (de corda) e o arroz. Dois ingredientes típicos da mesa brasileira, mas que, na receita, misturados com queijo coalho, carne seca, manteiga de garrafa e temperos verdes, ganham sabor único.
Lançada em 1950, a canção "Baião de dois" ganhou em 2003 - no disco Humberto Teixeira: O Doutor do Baião - uma versão amorosa e sofisticada de Caetano Veloso.
Se na interpretação de Luiz Gonzaga nós temos o ritmo baião como motor da luz, em 2003, Caetano vai buscar referências em "Bim Bom", de João Gilberto, para executar a canção.
Pouca gente percebe, mas na canção gilbertiana - especialmente no verso "é só isso meu baião e não tem mais nada não" - encontramos uma homenagem aos átomos rítmicos de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.
Caetano busca a essência (sintática e vocal) das palavras (colhidas nas feiras nordestinas) e do balanço do sertão, assim como fez João Gilberto, em uma de suas poucas composições.
Na letra, temos uma auto homenagem à "Baião" (primeiro grande sucesso de Luiz e Humberto). Pois, "se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois". E "quem quiser aprender é favor prestar atenção". João e Caetano prestaram bastante atenção.
No baião de Gonzaga e Teixeira, "Baião de dois" é o "arroz com feijão" nosso de cada dia; é o Yin e o Yang da cultura chinesa; e é Deus e Diabo juntos (e soltos) na terra do sol.

***

Baião de Dois
(Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira)

Abdon que moda é essa, deixe a tripa e a cuié
Home não vai na cozinha, que é lugá só de mulhé
Vô juntá feijão de corda, numa panela de arroz
Abdon vai já pra sala, que hoje têm baião de dois

Ai, ai ai, ó baião que bom tu sois
Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois
Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois
Ai ai, baião de dois, ai ai, baião de dois

03 abril 2010

93. Rosa morena

Já em seu primeiro sucesso (o compacto "Se Acaso Você Chegasse", 1960) Elza Soares, com sua voz inconfundível, incluiu um scat, inspirado em Lous Armstrong. Assim, ela introduzia o jazz no samba, criando sua marca vocal.
Em Sambossa (1963), Elza grava uma das canções símbolos de Dorival: "Rosa morena". Aqui, Elza personifica a personagem que, dengosa, faz charme diante do convite do pessoal encantadoi com sua beleza. Convite reforçado pelo coro que canta o nome dela.
O samba está esperando a morena de rosa no cabelo. Ou seria a rosa (a moça) de pele morena? A mudança de ênfase entre sujeito e adjetivo, este chamego com as palavras, só ampliam o tom sedutor, tanto da morena (cheia de pose), quanto do sujeito que lhe convida para sambar e inspirar e embelezar o samba do pessoal.

***

Rosa Morena (Dorival Caymmi)

Rosa morena
Onde vais morena rosa
Com essa rosa no cabelo e esse andar de moça prosa
Morena
Morena rosa

Rosa morena o samba está esperando
Esperando pra te ver
Deixa de lado esta coisa de dengosa
Anda rosa vem me ver

Deixa de lado esta pose
Vem pro samba vem sambar
Que o pessoal tá cansado de esperar

02 abril 2010

92. Tanto amar

Para Diego Sousa

Ney Matogrosso merece vários capítulos à parte, na história de nossa canção. Intérprete, ele consegue realizar verdadeiras transcriações sonoras, em cada canção que ele canta. Além da presença cênica sempre impactante, mesmo de terno e gravata.
Com história e obra para lá de inventiva e ousada, Ney atiça a imaginação e derrama muito leite bom na cara dos caretas.
Em 1982, no disco Matogrosso, ele gravou "Tanto amar". Com voz suave e balanço romântico e gostoso, a canção mostra um sujeito que, de tanto amar, acha que ela é bonita e que acredita no amor dele.
Se sim ou não é o que menos importa. O que interessa é o jogo de olhares e desejos do sujeito. Ele vai deslizando de um olhar a outro para envolvê-la.
No geral, temos uma mulher que vai tirando os véus e mostrando suas várias faces (mudando de
figura) para o sujeito seduzido pela pepita. E ele, pela soma dos olhares, se descobre inteiro. Eis a epifania arrasadora, que o leva a querer casar com esta mulher.
Ney Matogrosso se apropria de tudo que canta. É intérprete, cantor, ator e transcriador. É ainda um camaleão, aliás, como a mulher de "Tanto amar", a raptar-nos.

***

Tanto amar (Chico Buarque)

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita

Tem um olho que não está
Meus olhares evita
E outro olho a me arregalar
Sua pepita

A metade do seu olhar
Está chamando pra luta, aflita
E metade quer madrugar
Na bodeguita

Se seus olhos eu for cantar
Um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar
Toda a pintura

Ela pode rodopiar
E mudar de figura
A paloma do seu mirar
Virar miúra

É na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se nasci pra enfrentar o mar
Ou faroleiro

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela acredita
Tem um olho a pestanejar
E outro me fita

Suas pernas vão me enroscar
Num balé esquisito
Seus dois olhos vão se encontrar
No infinito

Amo tanto e de tanto amar
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico

01 abril 2010

91. Dancin days

Para Carina Dias

No convite para a noite de estreia da The Frenetic Dancing Days Discotheque, os versos: "Dancemos todos, dancemos, amadas, mortos, amigos, dancemos todos até não mais saber-se o motivo", do poeta Mário Quintana, deixavam entrever a pulsão do desejo do lugar.
Entre as mesas, meninas egressas do retumbante Dzi Croquettes faziam as vezes de garçonetes e de entreter o público. Mas, as malhas, os saltos e as apresentações com boas doses de humor e erotismo fizeram As Frenéticas abrir asas e ultrapassar os (des)limites da discoteca.
O desbunde e o glitter trazidos do Dzi Croquettes causava empatia e graça. E versos como "Eu vou fazer você ficar louco dentro de mim", de "Perigosa", arrebatou geral e o sucesso foi instantâneo.
"Dancin Days" (expressão tirada de uma música do Led Zeppelin, como Nelson Motta aponta no livro Noites Tropicais) está no segundo disco da trupe feminina: Caia na gandaia (1978).
A letra, aliada ao conhecido ritmo das noites quentes de então, é um grande convite à dança e à festa. Festejar a vida, mesmo que não haja motivos aparentes para isso.
Afinal, a gente as vezes sente, sofre e dança. Mas o pulo do gato é se deixar "dançar para não dançar", eis a máxima das impagáveis Frenéticas.

***

Dancin Days
(Rubens Queiroz / Nelson Motta)

Abra suas asas
Solte suas feras
Caia na gandaia
Entre nessa festa

E leve com você
Seu sonho mais louco
Eu quero ver esse corpo
Lindo, leve e solto

A gente as vezes
Sente, sofre, dança
Sem querer dançar.

Na nossa festa
Vale tudo
Vale ser alguém
Como eu
Como você

Dance bem
Dance mal
Dance sem parar
Dance bem
Dance até
Sem saber dançar