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31 maio 2010

151. Telhados de Paris

Para Fabiano Teles

Traduzir um poema é algo desumano (nos vários sentidos), alguns dizem que é um crime. Sem querer entrar no mérito, o fato é que há algumas boas traduções (ou transcriações, como os irmãos, poetas e grandes transcriadores Augusto de Campos e Haroldo de Campos sugerem).
No campo específico da canção, há inúmeras boas versões (e a grande maioria prefere este termo, ao invés de traduções) para canções estrangeiras. Mais um privilégio dos tempos de rápido e fácil contato entre culturas.
Zélia Duncan, por exemplo, tem se aventurado, com êxito, na feitura de versões. Pelo sabor do gesto (2009) tem duas: "De Bonnes Raisons" e "As-tu déjà aimé?", ambas de Alex Beaupain (compõem a trilha do belo filme Les Chansons d'amour, de Christophe Honoré), viraram "Boas razões" e "Pelo sabor do gesto", respectivamente.
Dou tais informações, pois percebemos em Pelo sabor do gesto um fio condutor montado sobre a discussão das aproximações e dos distanciamentos afetivos. Questão que atravessa o filme (tipicamente parisiense) e que Zélia, em mirada primorosa, traz para montar seu disco.
A perspectiva (algo monólogo) de um sujeito que canta suas dúvidas ganha adensamento e fixidez com a presença da regravação de "Telhados de Paris", de Nei Lisboa.
"Telhados de Paris" tematiza o próprio fazer poético-cancional, pois quando diz que "um silêncio sem fim (deixa) a rima assim sem mágoa, sem nada", a canção aponta para a estrutura formal do texto cantado. Não há rimas (métricas fixas, nem versos retos, corretos) na canção, muito embora haja uma rima insondável: entre a paisagem vislumbrada e o estado interno do sujeito.
A entoação quase falada (tranquila) de Zélia Duncan intensificam a sensação de que a canção está sendo "feita" naquele instante da audição. O ouvinte é convidado (a melodia com arranjo reiterativo ajuda) para entrar no estado das sensações do sujeito.
Tudo é incompreensão diante do sujeito que canta, ao final, para a dona de seus olhos (doidos). Ele sabe que, de algum modo, o comum e o simples estão lhe revelando algum sentido maior de existência.
O sujeito se estranha, ao estranhar a paisagem que mora ao lado (telhados de Paris em casas velhas), mas parece outro país. Afinal, a canção "fala" sobre conjunções e disjunções (proporcionadas pela circularidade do vento outonal) amorosas entre o sujeito e o outro, mas, principalmente, entre o sujeito e ele mesmo.
Zélia Duncan, namorada da música e da poesia, sabe que a canção "só se realiza em ouvidos alheios" e cria canções para encantar, pelo (nada simples) sabor do gesto.

***

Telhados de Paris (Nei Lisboa)

Venta, ali se vê
Aonde o arvoredo inventa um balé
Enquanto invento aqui pra mim
Um silêncio sem fim
Deixando a rima assim
Sem mágoa, sem nada
Só uma janela em cruz
E uma paisagem tão comum
Telhados de Paris
Em casas velhas, mudas
Em blocos que o engano fez aqui
Mas tem no outono uma luz
Que acaricia essa dureza cor de giz
Que mora ao lado, mas parece outro país
Que me estranha, mas não sabe se é feliz
E não entende quando eu grito
Eu tenho os olhos doidos, já vi
Meus olhos doidos são doidos por ti

O tempo se foi
Há tempos que eu já desisti
Dos planos daquele assalto
De versos retos, corretos
E o resto de paixão, reguei
Vai servir pra nós
E o doce da loucura é seu, é meu
Pra usar a sós

30 maio 2010

150. Maria do Socorro

Para Socorro Davino

Esta canção figurativiza (cria a figura) a personagem Maria da Socorro que, como tantas outras mulheres do morro, tem poder de charme e sedução.
Suas pernas torneadas pela geografia acidentada do morro (diferente da burguesinha que "malha o dia inteiro"), valorizadas pelo shortinho, arrasam os corações e mantem acesa a humanidade dos caras da comunidade.
Aliás, ouvindo a história de que ela é afim do "Zé Galinha", mas namora o "Zé Cachorro" (apelidos/pseudônimos que registram a imposição/domínio de força na comunidade), fica impossível não lembrar o adágio popular que pergunta: "de que adianta ser gata, se só gostamos de cachorros e eles preferem as galinhas?". Digressão (e brincadeira) à parte, há um sutil espelhamento disso na história de nossa personagem.
Saber que ela namora o "cachorro", mas queria o "galinha", sugere as limitadas (porém, sensuais) opções de escolha de Maria que, no fundo, socorre o morro com sua beleza carne dura - "só dá ela".
De todo modo, o que grita aos ouvidos em "Maria do socorro" (cantada por Maria Rita em Samba meu, 2007) é que, enquanto a mulher-título vai ao baile funk (de shortinho, top e gorro), o sujeito da canção escolhe o samba como ritmo para compor o perfil da ex Miss Comunidade.
O samba e o funk se unem - um no campo do ritmo e o outro no campo do imaginário - para desenhar a figura. E, ao final, apesar de querer viver noutros lugares (algo que Zé cachorro não deixa), ela sabe que seu reinado é na comunidade. Ela, divina e graciosa, esculturada pelas dores e delícias impostas pelo morro, é a afirmação da existência.

***

Maria do Socorro (Edu Krieger)

Maria do Socorro
Suas pernas torneadas
Pelas ladeiras do morro
Ela vai pro baile funk
De shortinho, top e gorro
É a fim do Zé Galinha
Mas namora o Zé Cachorro

E no baile
Só dá ela, só dá ela
Já foi Miss Comunidade
Na favela
Hoje sonha
Em morar noutro lugar
Mas Zé Cachorro não deixa
A gata se queixa
Mas fica por lá

29 maio 2010

149. O que é que a baiana tem

Para Adivânia

Batuque
(2001) revisita, primordialmente, canções dos anos 1930 e 1940, que entraram (definindo) para o imaginário do compositor e do ouvinte de canção no Brasil. Com canções que vão de Assis Valente e Synval Silva, passando por Almirante, Ney Matogrosso presta uma bela homenagem à história.
A canção "O que é que a baiana tem" (mais uma bela song list de Caymmi), com sua chamada e resposta - "tem? tem" - mais parece uma revista em alguém que se monta para uma apresentação. A ideia de montagem, aliás, é fundamental, pois são as partes (conferidas durante as perguntas) que compõem (montam) o todo da personagem, a imagem da baiana que irá requebrar. E o sujeito canta (extasiado pela beleza da figura): "Quando você se requebrar caia por cima de mim".
Nesta versão de Ney, na hora da anunciação do requebrado, o andamento melódico intensifica o batuque a fim de facilitar a evolução da baiana, ao mesmo tempo em que cria no ouvinte a sensação de "vê-la" requebrando.
A canção responde à pergunta: "do que a baiana é feita?". As repetições cristalizam (fixam), em quem ouve, a imagem da baiana; além de servir como "freios" no andamento pois, quando uma canção investe na aceleração (no caso, um samba), para que ela não corra desabaladamente, repetir ajuda a "segurar/amortecer" o andamento. Dito de outro modo, canções aceleradas precisam da repetição para conter o impacto da aceleração, em quem ouve.
É difícil cantar/ouvir "O que é que a baiana tem" sem vinculá-la à imagem da baiana estilizada de Carmen Miranda. Aliás, reza a lenda, registrada no livro Carmen, de Rui Castro, que foi Caymmi quem ajudou a diva (e ícone) brasileira a construir a persona "Carmen Miranda".
Ney Matogrosso sente o vínculo da canção com a musa e investe nos trejeitos (entoações brejeiras e jeito de corpo) próprios de Carmen.

***

O que é que a baiana tem
(Dorival Caymmi)

O que é que a baiana tem?
Mas o que é que a baiana tem?

Tem torço de seda, tem
Tem brincos de ouro, tem
Corrente de ouro, tem
Tem pano da Costa, tem
Tem bata rendada, tem
Pulseira de ouro, tem
Tem saia engomada, tem
E sandália enfeitada, tem
Tem graça como ninguém
Como ela requebra bem!

Quando você se requebrar
caia por cima de mim
caia por cima de mim
caia por cima de mim

O que é que a baiana tem?
Mas o que é que a baiana tem?

Tem torço de seda, tem
Tem brincos de ouro, tem
Correntes de ouro, tem
Tem pano da Costa, tem
Tem bata rendada, tem
Pulseira de ouro, tem
Tem saia engomada, tem
Sandália enfeitada, tem
Só vai no Bonfim quem tem
Só vai no Bonfim quem tem

Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim

Oh, Não vai no Bonfim
Oh, Não vai no Bonfim

28 maio 2010

148. Garota de Ipanema

"Garota de Ipanema" é, sem dúvida, uma das canções mais executadas e gravadas da história da nossa canção. Além das versões para outros idiomas. A coletânea Todas as garotas de Ipanema (2000) celebra tal feito unindo dez versões brasileiras (em diferentes estilos) para a canção. Há garotas de Ipanema, portanto, para vários gostos.
A canção, além de apresentar ao mundo a beleza de uma certa garota, canta o drama do sujeito da canção, pois, se na primeira parte ele "olha a coisa mais linda, que vem e que passa" (aquecendo seu coração), por outro lado, na segunda parte, ele percebe que a garota não é só dele (motivo da tristeza).
Esta passagem - da visão da garota à sensação de solidão - é acompanhada pela melodia que, sabiamente (e cúmplice do sujeito que canta), de "alegre" fica "triste". A canção, que até então vinha acelerada, ritmada pelo andar da garota, desacelera para pontuar os "ais" do sujeito.
A versão do Los Hermanos preserva esta ténue e decisiva (da beleza) mudança de tom unindo núcleos bossa nova (o canto do amor, do sorriso e da flor) com pitadas de mambo e rock'n'roll.
O solo de guitarra (o sujeito na praia) abre espaço para um festivo arranjo de sopros (a visão da "coisa mais linda"). No entanto, mais adiante, a voz e a melodia se acalmam ("por que estou tão sozinho?") e chega ao desespero (revolta), com o verso "a beleza que não é só minha" cantado nas alturas (e com rock pesado).
O Los Hermanos investe na quebra brusca do andamento para deixar bem marcada as distâncias entre o desejo e a sua realização.
A mistura do português com o francês pode nos indicar tanto a voz de um sujeito estrangeiro, diante da beleza da garota brasileira, quanto a vontade do sujeito em seduzir a garota, já que a língua francesa é tida como a língua da sedução. Seja como for, essa menina enche nosso mundo inteirinho de graça.

***

Garota De Ipanema (la Fille D'ipanema)
(Tom Jobim / Vinícius de Moraes / Los Hermanos)

La grande démence Belle et douce
La Fille d'Ipanema se pousse
Sur les rivages
Et toute la plage verte
Elle marche comme une algue
Portée sur l'aile d'une vague
Jusqu'au rivage
Et toute la plage verte

Ah, porque eu tô tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse
Si elle marche, Si elle danse
O mundo inteirinho
Mais toute la plage verte
E fica mais lindo
Ne voit que la mer

Nul ne sait ce qu'elle pense
Que quando ela passa
Sur le rivage
Se enche de graça
Et toute la plage verte
Por causa do amor
Por causa do amor
Ne voit que la mer

147. Telegrama

"Telegrama" tem o tempo narrativo dividido em três eixos: "Estava só, sozinho"; "Mas recebi um telegrama" e "Hoje". Esta divisão dá uma ideia da "progressão" dos acontecimentos e das experiências internas do sujeito da canção.
As metáforas e metonímias pinçadas do cotidiano (televisivo e cinematográfico) e coladas no quadro que o sujeito tenta apresentar ao receptor-ouvinte indiciam que, apesar da dor (de estar sozinho), ele não perde o humor. Este recurso (rimar humor e dor), aliás, é bastante frequente na poética melancólica de Zeca Baleiro.
Dito de outro modo, ao misturar diversas referências (do nosso pet shop mundo cão), Baleiro engendra sua obra de tradição (o apelo às imagens do dia-a-dia, do simples) e de modernidade (forças melódicas eletrônicas).
"Telegrama" (Pet shop mundo cão, 2002) é um ótimo exemplo disso. Na primeira parte (enquanto o sujeito canta sua solidão) percebemos (pelos alongamentos das vogais e pelo ritmo mais lento indiciando a tristeza do coração) o lirismo amargurado do ser diante da intempérie do universo ao redor; enquanto que com a chegada do telegrama (dizendo "eu te amo") a canção ganha rítmico acelerado (o coração dispara), pois o sujeito (mãos dadas com seu amor) já pode pensar em sair para ver o sol.
Ou seja, o sujeito, crente que o mundo ia se acabar (daí as imagens pesadas e sarcásticas que ele vê e mostra - "a top model magrela", "o canastrão na hora que cai o pano" e "o palhaço do circo vostok") descobre o amor de alguém (de Aracajú ou do Alabama, pouco importa onde o outro está, o que importa é o canto do amor: "nego, sinta-se feliz").
Esta virada (bem marcada no andamento melódico) faz o sujeito querer tomar "loucas" atitudes: "mandar flores ao delegado" e "bater na porta do vizinho e desejar bom dia".
É assim, de forma enviesada, que "Telegrama" dialoga com "E o mundo não se acabou", por exemplo. Enquanto na canção de Assis Valente o sujeito age "loucamente" na expectativa do fim do mundo (da morte); na canção de Zeca Baleiro é o canto do amor (da vida) que o leva a querer "beijar o português da padaria".

***

Telegrama (Zeca Baleiro)

eu tava triste tristinho
mais sem graça que a top model magrela
na passarela
eu tava só sozinho
mais solitário que um paulistano
que um canastrão na hora que cai o pano
(que um vilão de filme mexicano)
tava mais bobo que banda de rock
que um palhaço do circo vostok

mas ontem eu recebi um telegrama
era você de aracaju ou do alabama
dizendo nego sinta-se feliz
porque no mundo tem alguém que diz
que muito te ama que tanto te ama

por isso hoje eu acordei com uma vontade danada
de mandar flores ao delegado
de bater na porta do vizinho e desejar bom dia
de beijar o português da padaria

oh mama oh mama oh mama
quero ser seu
quero ser seu
quero ser seu papa

26 maio 2010

146. Veja bem, meu bem

Para André Masseno

"Veja bem, meu bem" trabalha com a quebra da expectativa do ouvinte. O sujeito da canção vai construindo uma ideia (a de que ele arranjou outro alguém) que será (provavelmente quando o receptor já estiver a ponto de explodir) desconstruída: "arranjei alguém chamado saudade".
O tom de confissão e embaraço do sujeito ("veja bem, meu bem") amplia o estado de tensão que se estabelece no receptor, que cansado, de regresso de uma viagem, respira aliviado ao final da declaração. Afinal, é uma confissão de amor (fiel e leal) o que ele escuta.
Obviamente, podemos ouvir no discurso do sujeito que canta a sugestão de uma ameaça: "viajar sem mim, me deixar assim, tive que arranjar alguém pra passar os dias ruins", ou seja, "não me abandone (a solidão deixa o coração neste leva-e-traz), pois você não vai gostar do que pode acontecer". Esta ideia é reforçada na cobrança de que o casamento ("somos no papel") não está completo ("mas não no viver").
Mas fiquemos no plano do que é dito: eu te amo, sofro com tua ausência, mas te espero. A saudade é personificada (materializada) para encher o vazio deixado pelo ser amado. Esta imagem, reiterada inúmeras vezes na canção popular, sempre funciona como um encantamento para quem ouve.
Ao contrário da "moça linda" da canção "Em plena lua de mel", que "toda vez que o seu namorado sai, ela vai ver outro rapaz", o sujeito de "Veja bem, meu bem" se "fecha em si", e, no desassossego e na falta de paz, busca consolo (e alimenta) o sentimento que intensifica a ausência do outro.
Ney Matogrosso (Inclassificáveis, 2008), ao trabalhar com as alturas, investe, primorosamente, na dubiedade do texto. Estas traições sutis são sempre bem vindas e apimentam a relação, o sujeito sabe disso, cria um discurso enviesado sobre isso, e declara: Veja bem, amor, veja bem, além, nada abala o meu amor.

***

Veja bem, meu bem (Marcelo Camelo)

Veja bem, meu bem
sinto lhe informar
que encontrei alguém
pra me consolar

este alguém está
quando você sai
e eu só posso crer
pois sem ter você
nestes braços tais

Veja bem, amor
onde está você
somos no papel
mas não no viver

Viajar sem mim
me deixar assim
tive que arranjar
alguém pra passar os dias ruins

enquanto isso
navegando vou sem paz
sem ter um porto
quase morto sem um cais
e eu nunca vou
te esquecer, amor
mas a solidão
deixa o coração
neste leva-e-traz

Veja bem, além
destes fatos vis
saiba, traições
são bem mais sutis

Seu eu te troquei
não foi por maldade
amor, veja bem
arranjei alguém
chamado saudade

25 maio 2010

145. Acontece que eu sou baiano

Na era da mobilidade, a possibilidade de transitar por diversos lugares amplia as chances de contato entre as pessoas e, consequentemente, as paixões entre indivíduos de origens diferentes.
"Eu não sou daqui" (Wilson Batista e Ataufo Alves) e "Acontece que eu sou baiano", de Dorival Caymmi, são dois bons exemplos disso.
Na primeira temos um sujeito (estrangeiro e forasteiro do que vê e ouve, já que parece assustado ao ser "cantado" na capital do rio de Janeiro) recusando o amor de alguém, pois sendo da terra de Araribóia (Niterói-RJ) é lá que seu coração está empenhado. Ele se apressa para pegar a barca e retornar para quem lhe quer.
Já em "Acontece que eu sou baiano", por outro lado, temos um sujeito (também fora de sua terra natal) que se depara com uma mulher dona de um requebrado parecido com o das mulheres (toda menina baiana tem um jeito que Deus dá) de seu lugar.
Aqui, o sujeito se deixa enfeitiçar, apesar de sugerir o contrário (com o uso de bênçãos e proteções). Sendo ele do lugar onde há tanta mulher assim, ela desperta o fascínio exatamente por consegui ser diferente, mas igual. O semelhante (requebrado pro lado) oferece paz ao sujeito que veio de longe e o diferente (UM requebrado pro lado) dá a dose de mistério necessária à paixão e ao desejo.
Famoso na época dos cassinos e por acompanhar Carmen Miranda em algumas apresentações, o grupo carioca Anjos do inferno (nome que parodia a orquestra Diabos do céu, de Pixinguinha) emprestam à canção o tom malemolente (e de receio) que ela pede.
O disco Brasil Pandeiro (1963), através de Léo Villar (integrante do grupo), reúne algumas das grandes interpretações do Anjos do inferno e é uma preciosidade.

***

Acontece que eu sou baiano
(Dorival Caymmi)

Acontece que eu sou baiano
Acontece que ela não é

Tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
Meu Senhor São José

Tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
E ninguém sabe o que é

Há tanta mulher no mundo
Só não casa quem não quer
Porque é que eu vim de longe
Pra gostar dessa mulher?

Essa que tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
Meu Senhor São José

Essa que tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
E ninguém sabe o que é

Já plantei na minha porta
Um pezinho de guiné
Já chamei um pai-de-santo
Pra benzê essa mulher

24 maio 2010

144. Trégua suspensa

O verso "tudo é inferno pra quem nunca quer morrer", da canção "Trégua suspensa" (Melhor assim, 2010), ecoa o pensamento que diz que "estar no mundo é estar no inferno".
O inferno é a esfera dissociada da proteção divina; o inferno é estar vivo e jogado (expulso do ventre) no mundo; e é, ainda, o contato com o exterior, que é, em verdade, o contato com o nosso interior. Ou seja, quem entra no inferno só consegue se comunicar consigo mesmo. Claustrofobia.
Pensando com os conceitos do filósofo Peter Sloterdijk em mente, desde o ventre materno (nossa microesfera e paraíso) somos cantados (pela mãe que nos abastece abundantemente), incutindo a necessidade da música em nossa constituição. Assim, viver é permanente busca pela fama (pelo canto primordial). Viver é estar cíclica e infinitamente (re)criando esferas que nos dão um vão, mas necessário, estado de proteção (algo maternal).
Porém, com seus apelos (suas serpentes), o mundo nos seduz com a ideia de (falsa) liberdade. Nossas esferas explodem e partimos instintivamente para a feitura de outras, automaticamente. Já que o paraíso é um pacto contra a exterioridade, ilhamo-nos (na lembrança platônica de uma esfera fechada), cercando nossa esfera com aquilo que nos (en)canta, no momento.
Como a estabilidade parece ser algo impossível, o sujeito tende a morder as maçãs. A serpente, portanto, é nossa cúmplice e irmã.
Em "Trégua suspensa", além do sujeito suspender a trégua com a vida, pois, retornará ao inferno/céu de amar, com o retorno do amor (ao lar, à esfera amorosa), ele mesmo, corpo em movimento, está cheio de inferno (receio) e céu (perdão).
Os momentos de escape nos salvam. O perdão e a companhia de quem amamos, por exemplo. O canto de amor. Ele nos dá a ilusão protetora e nos enche de ânimo para o começar de novo. Afinal, vale a pena sobreviver e usar as engrenagens da vida para criar a felicidade: abrir a porta e dar de cara "com essa cara de menino cínico", que desestabiliza o coração.
Até porque, "a vida é curta e o amor é quase eterno", e que seja enquanto dure. Ao menos na canção, ele está eternizado pelo diálogo erótico (feminino-masculino) das vozes de Teresa Cristina e Lenine.

***

Trégua suspensa
(Teresa Cristina / Lula Queiroga)

Depois que você virou visita
A quem se deve tanta honra
Essa chegada sem convite algum
Abro a porta e dou de cara
Com essa cara de menino cínico
Sabendo que eu sofro do coração
Pode sentar, pode montar sua defesa
Que eu já preparei o meu perdão
Hoje eu quero sua companhia
Te dar todo o tipo de alegria
E adormecer no colo da sua mão

A vida é curta e o amor é quase eterno
Tudo é inferno pra quem nunca quer morrer
e eu que já morro de saudade, simplesmente
da sua cara me pedindo pra esquecer
E olha agora aqui: Você!

23 maio 2010

143. A flor e o espinho

Nelson Cavaquinho imprimiu suas canções com as cores da Lapa. A malandragem, a boemia e a disciplina virtuosa do choro enfeitam seus sambas.
Com sua peculiar maneira de tocar (com apenas dois dedos: polegar e indicador), fosse o cavaquinho, fosse o violão, o "menestrel das ruas" compunha a partir de sentimentos e sensações que atravessam (cortam e dilaceram) o coração (leviano, vagabundo e amante).
Deste modo, a melancolia boêmia, com seus amores fracassados e o risco presente da morte, carrega nas tintas que colorem os versos e enchem as melodias de paixão.
A versão da (mais que) divina Elizete Cardoso (Elizete sobe o morro, 1965) para "A flor e o espinho" é comovente. Aliás, é impossível ouvir Elizete e não ter a certeza de que a vida mudou naquele instante. E ouvi-la interpretando a amargura de um fim de caso é mais que demais. A voz de Elizete "materializa", diante do ouvinte, a "história" apresentada na canção.
Os versos "tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor" entraram para o imaginário poético da canção brasileira. Eles condensam a mágoa e a vontade de seguir do sujeito, traduzindo o sofrer e o desejar de quem ama.
A figura da flor (geralmente a rosa, "divina e graciosa") abriga em si a possibilidade da dor, pois seu caule é protegido por espinhos. Tal imagem parece sugerir que quando nos enamoramos por alguém focamos apenas naquilo que maravilha nossos olhos, esquecendo que cada qual arrasta idiossincrasias (arestas insuspeitadas) que, muitas vezes, se chocam no embate das subjetividades. Mas isso só o tempo mostra.
Ou melhor, com o tempo, os véus caem e os espinhos, que estavam presentes desde o início e nós fingíamos não ver, ficam mais sensíveis.
"A flor e o espinho" já ganhou boas e competentes versões, mas ouvi-la através do espelho de Elizete (atravessado pela Divina) é sublime e arrebatador.

***

A flor e o espinho
(Nelson Cavaquinho / Alcides Caminha / Guilherme de Brito)

Tire o seu sorriso do caminho
que eu quero passar com a minha dor
Hoje, pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma a sua
O sol não pode viver perto da lua

É no espelho que eu vejo a minha magoa
A minha dor e os meus olhos rasos d'agua
Eu na sua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em seu amor

22 maio 2010

142. O livre atirador e a pegadora

O xote, o xaxado e o baião, com suas derivações, sempre estiveram presentes na obra de Gilberto Gil. Importa lembrar a (re)valorização que a Tropicália deu a Luiz Gonzaga.
Vira e mexe, portanto, é possível identificar as matrizes do sertão impregnando as canções de Gil com explosões sonoras de puro encantamento e ritmo.
Em Fé na festa (2010), Gil adensa estas perspectivas nordestinas utilizando os estratos melódicos/rítmicos e os temas caros às noites de céu em festa: as noites de São João.
"O livre atirador e a pegadora", um xote dengoso, apresenta um sujeito que sente o clima sensual das noites frias de junho. Porém, ele finda por expandir sua mirada ao comportamento dos brincantes (aqueles que vão, e fazem, à festa) para os festejos populares de norte a sul do país. "Vale pro Rio, São Paulo, pra Bahia".
O mote é o malfadado e desejado "vale-night" (outrora conhecido como "alvará de soltura" ou "alforria"). Ele é a solução para a agonia daqueles que querem curtir a festa, com liberdade, mas não querem ficar mal com seus parceiros, como canta o Asa de águia.
O vale-night (o "passaporte da alegria"), assim, atesta e formaliza a ideia de que, no carnaval (e nas festas populares - de rua - em geral), "eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também". Mas, óbvio, como toda formalidade, o vale (night or day) tem um prazo de validade, estabelecido pelos namorados.
Sem juízo de valor, ou qualquer falsa moral, o sujeito, meio confuso, canta (observa e registra) o novo modelo ético-erótico-afetivo estabelecido pelas pessoas na festa, em que a quantidade de "ficadas" ("muita performance, muita parada") despoleta, ou não, a qualidade das relações,tão quentes e frágeis quanto uma brasa de fogueira. Sem o stress das relações românticas, com suas pressões e cobranças. Agora a coisa mudou e o sujeito do xote não sabe mais como definir os casos eróticos: "Não é casal porque não são casados, não é um par porque logo são três, ou mais".
A atitude de ser livre atirador e pegadora (e vice-versa, a mulher também desempenha papel ativo no jogo) aponta a atmosfera de autodevoração das festas: "Namoradas, namorados vários de uma vez". Posto que, "amor pra eles é amor pletora" (superanbundante).
Além das gírias, Gil joga com os nomes de bandas conhecidas no Nordeste (e além), afinal são elas que esquentam os jogos amorosos, para criar o clima de descontração e de liberdade (permissividade) da festa. Timbalada, Babado Novo, Psirico e Calcinha Preta viram substantivos e adjetivos que espelham e espalham a sensualidade pelo ambiente.

***

O livre atirador e a pegadora
(Gilberto Gil)

Não é casal porque não são casados
Não é um par porque logo são três, ou mais
O fato é que já estão acostumados
Namoradas, namorados vários de uma vez

Muita performance, muita parada
Muita balada, muito forrozão
Não tem romance, não tem paixão frustrada
De vale night não precisam não

É vale dia e noite, é vale noite e dia
Vale pro carnaval, vale pro São João
vale pro Rio, pra São Paulo, pra Bahia
vale pro Ceará, vale pro Maranhão

O livre atirador e a pegadora
A pegadora e o livre pegador, que amor
Que amor pra eles é amor pletora
Quem namora, quem namora
Quem namora, quem namora quem

Tem Timbalada, tem Babado novo
Tem Psirico, tem Calcinha azul
Calcinha Preta com Cuequinha branca
Tem vale norte, vale norte a sul

21 maio 2010

141. Mormaço

Mormaço é a fronteira entre a chuva e o sol, como a Nação Zumbi canta em "Mormaço" (Nação Zumbi, 2002): "tá fazendo sol, vai chover". Amparados no maracatu que pesa uma tonelada, a batida do grupo investe na sensação de calor e asfixia que domina o sujeito, metaforizando o "estado mormaço" diante da vida.
No "Mormaço" de Os paralamas do Sucesso (Brasil afora, 2009), além de ter uma homenagem à capital paraibana, temos o sujeito cantando, também, o "mormaço da miséria"; de um lugar onde "na moleira, só quentura".
Acompanhado pela "sombra" de sua história (vale lembrar que Herbert Vianna nasceu na capital da Paraíba), o sujeito de "Mormaço" usa seu espaço de origem para pensar as interdições do Brasil afora. Ele ilumina (desce ao rio e fica à toa) o seu lugar para clarear o país.
"Dá um laço e lança o sal (...) Desce ao rio e fica à toa" remete à geografia da capital: uma cidade desenvolvida entre o rio e o mar. Mas uma menção à fronteira, espaço do mormaço existencial. A cidade desenhada na canção é, portanto, fronteiriça, espremida (asfixiante, apesar dos pólos d'água). Ela é a confluência do excesso e da escassez.
A canção (texto e melodia) cria figuras, atrás dos olhos do ouvinte, que remetem à miséria social (e à luta para respirar), estabelecendo o incômodo diante da visão do sujeito. Ao "contar o que se sente", o sujeito chama a atenção do ouvinte para as contradições e paradoxos (o que falta e o que é demais) de um "país tão continente". "Que faça sol ou venha a chuva, a vida aqui ainda é dura".
As participações especialíssimas de Zé Ramalho (com sua voz épica, cheia de memória e história) e Totonho (com a mirada na tradição e no moderno), ambos paraibanos, transformam a canção no "canto do povo de um lugar". Porém, fugindo do regionalismo limitador e sufocante, já que o disco Brasil afora passeia por várias texturas sonoras (vertigem de cores) do país.

***

Para assistir ao clipe de "Mormaço" clique AQUI.

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Mormaço (Paralamas do sucesso)

Está lá ao Deus dará
Na costa da Paraíba
Na barcaça em Propriá
Na ferrugem dessa trilha
Não circula nem o ar
No mormaço da miséria
Quem luta pra respirar
Sabe que essa briga é séria

Dá um laço e lança o sal
Passa ao largo em João Pessoa
Tece a vida por um fio
Desce ao rio e fica à toa

Dentro ou distante do mar
Num país tão continente
Tanta história pra contar
Nas quais se conta o que se sente
De onde foge, pra onde vai
Nesta vertigem de cores
O que falta e o que é demais
Quais seus mais ricos sabores

Dá um laço e lança o sal
Passa ao largo em João Pessoa
Tece a vida por um fio
Desce ao rio e fica à toa

Por ti tento acender
Outra luz em nossa casa
Lembro que sempre sonhei
Viver de amor e palavra

20 maio 2010

140. Canção da América

A "Canção da América", de Fernando Brant e Milton Nascimento, é o canto do desejo de frátria, devido aos laços histórico/afetivos que unem os países americanos, em especial, os latino-americanos.
Registrada no disco Sentinela (1980), a canção, pelo potencial confraternizador que carrega (mesmo que o tempo e a distância digam "não"), tornou-se o hino de celebração das amizades. Principalmente para embalar os encontros e as despedidas que a vida nos impõe. Na canção, por exemplo, podemos pensar nos amigos exilados pelas ditaduras de nossos países.
Seja como for, há uma "voz coletiva" (anônima e de todos, iconizada pela sobreposição de vozes, durante o refrão), para além da "voz do sujeito individual", apontando o desejo de bem comum, como resistência às agruras da história. Afinal, como diz a "Cancion por la unidad de Latino America", de Pablo Milanes e Chico Buarque: "A História é um carro alegre cheio de um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue".
Para além das diferenças, há semelhanças que iluminam a trama da formação latino-americana. Significantes que (em diálogo pacífico) devem ser usados em prol da harmonia e da felicidade dos povos.
É interessante perceber, também, o uso do verbo "falar" - "assim falava a canção" - tencionando a memória do sujeito (na intenção de valorizar a mensagem do seu canto), mas apontando, por outro lado, a ideia de que "por trás da voz que canta" há "uma voz que fala". O que estabelece a relação entre a fala cotidiana, com os elementos da oralidade (vocalidade), e o canto.
A voz de Milton Nascimento dá o lamento certo à despedida ("quem cantava chorou ao ver o seu amigo partir"), mas aquece o coração ao inventar a possibilidade do encontro, as outras tramas de destino, ("qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar"). É do centro da tensão entre o partir e o voltar que o sujeito canta a fraternidade, tentando encontrar algum sentido na separação.

***

Canção da América (Fernando Brant / Milton Nascimento)

Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir

Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou

Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração

Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

19 maio 2010

139. Amor de índio

"Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive". Estes versos de Ricardo Reis sintetizam a mensagem da canção "Amor de índio", de Beto Guedes e Ronaldo Bastos (Amor de índio, 1978).
Se entregar por inteiro nas mínimas ações é tarefa árdua e complexa. A exigência de permanente mutação tende a afastar o humano do lado bom de ser tudo; de perceber o ciclo natural da vida; e de não perder a fé (que remove montanhas).
O sujeito da canção canta o motor da luz. Tudo o que move é sagrado, pois a única certeza estável é a de que tudo muda, está em movimento e, por isso, brotar e secar são bênçãos que constituem o sujeito (enquanto a chama arder).
Ou seja, o sujeito sagra (utilizando, muitas vezes, reminiscências bíblicas, para vaticinar suas certezas) a oportunidade de estar no mundo e de poder participar das engrenagens da máquina, ao lado de alguém.
As imagens geradas pela letra são de uma beleza toda terna, visto que trabalhadas sobre momentos do cotidiano do ouvinte, que se deixa encantar e ser amado.
Obviamente, a canção permite ainda a leitura de um amor entre dois, mas, diante do filme que passa no cérebro de quem ouve, fica irresistível ampliar os limites do amor.
A melodia dá o tom de algo móvel, seja o corpo, seja a mente. O rítmo do trabalho. Eis o amor de índio, o amor desautomatizado que faz de cada coisa algo para além do sagrado.
"Sim, todo amor é sagrado" aponta para as várias formas de amar, afinal, qualquer maneira de amor vale a pena. O verso revela também que o sujeito, do seu jeito de amar - amor de índio - respeita e ama todo amor.

***

Amor de índio (Beto Guedes / Ronaldo Bastos)

Tudo que move é sagrado
e remove as montanhas
com todo o cuidado, meu amor.
Enquanto a chama arder
todo dia te ver passar
tudo viver a teu lado
com arco da promessa
do azul pintado, pra durar.

Abelha fazendo o mel
vale o tempo que não voou
A estrela caiu do céu
O pedido que se pensou
O destino que se cumpriu
de sentir seu calor
e ser todo
Todo dia é de viver
para ser o que for
e ser tudo

Sim, todo amor é sagrado
e o fruto do trabalho
é mais que sagrado, meu amor.
A massa que faz o pão
vale a luz do teu suor
Lembra que o sono é sagrado
e alimenta de horizontes
o tempo acordado, de viver.

No inverno te proteger, no verão sair pra pescar
no outono te conheçer, primavera poder gostar
no estio me derreter
pra na chuva dançar e andar junto
O destino que se cumpriu
de sentir seu calor e ser tudo.

18 maio 2010

138. Faz parte do meu show

Quando se pergunta o que é a verdade, Nietzsche, em O livro do filósofo, responde: "é uma multiplicidade incessante de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em síntese, uma soma das relações humanas que foram poética e retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas, e que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras". Ou seja, trocando em miúdos, as verdades "são ilusões cuja origem está esquecida".
O sujeito de "Faz parte do meu show", de Cazuza e Renato Ladeira (Ideologia, 1988), encontra abrigo no peito do traidor. Afinal, o show que ele cria para si o trai, na invenção permanente de novas desculpas - metáforas, metonímias... - para a vida (que dói).
A voz tranquila de Cazuza empresta maturidade (ar de professor) ao sujeito consciente das artimanhas do real (incapturável) e que usa tal conhecimento para criar seu show, para encenar sexos, com todo amor.
A língua cria a realidade, como pontificou o filósofo Vilém Flusser. Ao cantar suas promessas malucas e curtas, até porque a verdade está sempre exigindo novas verdades, o sujeito adensa a confusão (das coxas) do que é viver. Ele oferece "outra vida" à moça. Vida mais real, posto que ficcional (num clip sem nexo, meio bossa nova e rock'n'roll).
De fato, ele a engravida de "uma bolha de sabão", tão leve e frágil quanto qualquer verdade.
O sujeito da canção, que já esqueceu as origens de suas ilusões, reconhece a ficção na verdade e, por isso, se torna mais "verdadeiro", pois apresenta seu avesso ao outro.
Entre luzes brandas e músicas invisíveis, ele inventa seu show, inventa a vida. Ele investe na dúvida do outro para manter o sentimento a salvo. Para proteger o outro da solidão, que ele mesmo, sujeito da canção, pierrô-retrocesso, vive.

***

Faz parte do meu show
(Renato Ladeira / Cazuza)

Te pego na escola
e encho a tua bola
com todo o meu amor
Te levo pra festa
e testo o teu sexo
com ar de professor

Faço promessas malucas
tão curtas quanto um sonho bom
Se eu te escondo a verdade, baby,
é pra te proteger da solidão

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Confundo as tuas coxas
com as de outras moças
te mostro toda a dor
Te faço um filho
te dou outra vida
pra te mostrar quem sou

Vago na lua deserta
das pedras do Arpoador
Digo 'alô' ao inimigo
Encontro um abrigo
no peito do meu traidor

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Invento desculpas
provoco um abriga
digo que não estou
Vivo num clip sem nexo
um pierrô-retrocesso
meio bossa nova e rock'n'roll

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

17 maio 2010

137. Enquanto engoma a calça

A metacanção, irmã da metalinguagem, é aquela canção que se autorrefere. Ou seja, é a canção que "fala" da canção. Seja do modo de como fazer uma canção, seja comentando a própria canção em audição, por exemplo.
Uma busca rápida na discografia e nas composições de Ednardo revela um bom número de metacanções. "Enquanto engoma a calça", de Ednardo e Climério (Ednardo, 1979) é uma delas.
Depois de um gostoso dedilhar de cordas (algo caipira), entra a voz do sujeito (meio desconfiado, sem jeito e quase calado) pedindo para cantar (rapidinho) sua história, ou melhor, a sua resposta para a pergunta: o que é cantar?
A atitude e a dicção de Ednardo lembram os cantadores de feira livre (cada vez mais escassos, infelizmente), que pedem licença para cantar, em troca de algum trocado, enquanto as pessoas seguem suas tarefas cotidianas. Sem querer atrapalhar - "Arrepare não" - o cantor, ao contrário, enfeita a vida dos outros.
Cantar, para o sujeito de "Enquanto engoma a calça", não se aprende (nem com passarinho, símbolo e desejo dos cantores). Cantar é a contrapartida para o "olhar do meu amor". Cantar parece "com não morrer", afinal "a vida é que tem razão". Ter o olhar do outro é a razão de viver. Até porque, "somos" o olhar dos outros sobre nós.
Curtinha, a história do sujeito eletrizado só desacelera quando ele lembra e cita as perdas amorosas: uma para São Paulo (e aqui lembramos que Ednardo é de Fortaleza) e outra para um dentista. Enquanto a primeira busca, como alguns retirantes nordestinos, outras (melhores) oportunidades "na cidade grande"; a segunda prefere a estabilidade de um "doutor" a um simples (e incerto) cantador.
Fácil de cantar, a letra é apresentada enquanto uma calça é engomada. A roupa para o cantor "voar maneiro" e ir aonde o povo está? Eis a sina da vida de artista. O sujeito sabe e canta, pois no canto a história se eterniza (fácil de cantar e decorar) e ninguém, nem ele mesmo, esquece.

***

Enquanto engoma a calça
(Ednardo / Climério)

Arrepare não
mas enquanto engoma a calça eu vou lhe contar
Uma história bem curtinha fácil de cantar

Porque cantar parece com não morrer
É igual a não se esquecer
Que a vida é que tem razão

Esse voar maneiro foi ninguém que me ensinou não foi passarinho
foi olhar do meu amor me arrepiou todinho e me eletrizou assim
quando olhou meu coração

Ai, mais como é triste
essa nossa vida de artista
Depois de perder Vilma prá São Paulo
perder Maria Helena pro dentista

16 maio 2010

136. Violão e voz

No disco Ana Rita Joana Iracema e Carolina (2001), Ana Carolina imprime um claro gesto autoral: a feitura de um rock-samba-trágico que, atravessado pela potência da voz da cantora, que em si guarda o poder de divas dadivosas do passado, desliza entre belezas e delírios de eus múltiplos.
A canção "Violão e voz", de Ana Carolina, é metacanção na medida em que condensa filigranas de outras tantas canções que povoam o imaginário do ouvinte: de Noel Rosa e Geraldo Pereira a Chico Buarque, para ficarmos nas referências mais visíveis.
Aliás, o cancioneiro de Chico Buarque atravessa todo o disco, a partir do título, já que todas as mulheres ali citadas foram cantadas por ele. Ana, Rita, Joana, Iracema e Carolina são mulheres de Chico que Ana Carolina toma como mote para se multiplicar em outras a cada canção, sugerindo que não somos um só, mas muitos: cada um é uma legião.
Se Chico sempre soube combinar-se com Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Ana recolhe todos e compõe um samba ao estilo batucada informal em caixa de fósforo. Ela agrega a isso tudo a voz não menos poderosa de Alcione. O resultado são duas vozes em acordo íntimo na busca da alegria-trágica do canto e do cantar.
Se em "Samba e amor", de Chico Buarque, o sujeito faz "samba e amor até mais tarde", em "Violão e voz" o sujeito faz "samba e amor a qualquer hora": desconstrói tempo e espaço, suspende o juízo para desenhar sua condição solitária. Para tanto faz uma bonita citação literária: a presença fantasmagórica do livro Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez.
"Ficar sozinho é pra quem tem coragem", diz o sujeito. Corajoso, ele assume sua condição e faz do canto um diálogo singular com a vida: "Não quero viver a exemplo da vida dos santos". O sujeito se entrega à canção: torna-se instrumento da paz do outro: nós, ouvintes.
Instrumento de quereres diversos, o sujeito é o tambor: pulso e tradição de si, do samba, de muitos. Por isso ele faz samba e amor a qualquer hora. Ele une e canta versos de "Pisei num despacho", de Geraldo Pereira e Elpídio Vianna, com Noel Rosa - o samba com feitiço aliado ao samba sem farofa e vela - procurando a cadência perfeita para dizer: "Eu sou como um tambor que ressoa mas dentro dele que dá pessoa".

***

Violão e voz
(Ana Carolina)

Eu faço samba e amor a qualquer hora
De madrugada tem batucada
E eu tô afim de você
Ficar parado eu não aguento
Não quero viver a exemplo da vida dos santos
Eu não moro em São Francisco
Eu não moro em São Francisco
E você faça de mim um instrumento de sua paz
E sabe do que mais
Eu sou como um tambor que ressoa mas dentro
Dele
que dá pessoa

Eu faço samba e amor a qualquer hora
Porque não agora
Eu não posso perder você
Como quem perde um real e não nota não vê
Sem querer pisei num despacho
E saí cantando
Geraldo Pereira
Sem querer eu pisei num jardim
E saí cantando
Noel Rosa

Eu tenho você no coração
Ficar sozinho é pra quem tem coragem
Eu vou ler meu livro Cem anos de solidão
E nada melhor que ficar a sós com a voz e o violão
E nada melhor que ficar a sós com violão e voz

15 maio 2010

135. Vide Gal

Para Renan Ji

O filme Era uma vez (2008) de Breno Silveira, a grosso modo, pode ser tomado como uma releitura da história de Romeu (Dé - Thiago Martins), morador de uma favela do Rio,e Julieta (Nina - Vitória Frate), garota do asfalto zona sul. Ou seja, do amor impossibilitado pelos apelos sociais.
"Vide Gal", de Carlinhos Brown, entra na trilha do filme para compor o quadro das conjunções e disjunções entre os amantes. A interpretação de Martinho da Vila e Mart'nália investe no verso "riu pra não chorar", que é, de fato, a síntese do sentimento do sujeito que, diante das delícias ofertadas pela cidade, percebe as dores (paradoxos) que a caracterizam.
O Rio de Janeiro é a "menina dos olhos" do sujeito. A expressão serve bem ao rumo que nossa leitura toma, pois "Nina", a personagem femiNina principal do filme, está dentro de "meNina". Isto complexifica a fusão mulher/cidade cantada pelo sujeito.
Ao percorrer os olhos sobre a cidade, o sujeito vislumbra a amada. O recurso de espelhamento finda, na versão de Martinho da Vila e Mart'nália, a adensar a melancolia.
O sujeito da canção, posicionado no Videgal, "vê o mar e as ilhas" e descreve seus sentimentos contraditórios pela cidade: rio e ria, enquanto a cuíca chora. Sobreposições, de vozes, cantos e espaços, que cantam, em primeira pessoa, o Rio de Janeiro.

***

Vide Gal
(Carlinhos Brown)

(Deixa eu ser teu espião
já que eu não sou canção
vou te amar, amar, amado
vou gritar Maracanã)

Rio, rio, rio
Rio pra não chorar
Pra quem não sabe sou rio
A cantar

Som do Flamengo
Soa ali em Botafogo
Sou da casquinha do ovo
Essas flores
Na Rocinha vou plantar
Quem olhar minha barraca
No morro de Dona Marta
Quer morar

Rio, rio, rio
Rio pra não chorar
Pra quem não sabe sou Rio
A cantar

Se tenho fome
Como logo o Pão de Açúcar
Urro no morro da Urca
Se quero abraço
Tenho o Cristo pra abraçar
Tamborim pra ti tarol
Escalados pelo sol
Rio e morro de amar

Vide Gal

14 maio 2010

134. Tola foi você

Angela Ro Ro soube usar a herança vocal de Maysa e adequar a canção do transbordamento do sujeito à sua voz (docemente) rouca. Já no primeiro disco, Angela Ro Ro (1979), ela emplacou sucessos que entraram para a discografia básica da canção brasileira. "Tola foi você" é um deles.
A canção de mensagem direta, sem meias palavras, é o canto do sujeito que conseguiu "sublimar" o desprezo do outro. Este, que nunca entendeu o valor de um simples carinho, ouve a gota d'agua se transformar em sangue e transbordar. A fogueira se apagou e o mel açucarou, endureceu. De todo modo, a vida é mesmo assim e o sujeito agradece.
"Agora veja bem, o mal é vai e vem, só esperar", é o esconjuro final do afeto que existiu. Como "dois bicudos não se beijam" (será?), o sujeito acreditou que as diferenças pudessem unir os dois. Pura ilusão que propiciou a auto descoberta (as mudanças de conduta) dele. Ele, ao passar pela "prova de amor", sai fortalecido e lúcido. Ele deu seu quinhão de vida à relação: o amor.
A melodia blues, expressiva e repetitiva, adensa a impetuosidade (escandalosa - coração aberto, e prudente - felicidade perto) do sujeito, que conclui: "Sou toda amor".
Ou seja, apesar de você, só o amor é real e possível. Eis a emissão sonora que mais dói em quem ouve "Tola foi você".

***

Tola foi você (Ângela Rô Rô)

Tola foi você ao me abandonar
Desprezando tanto amor que eu tinha a dar
Agora veja bem, o mal é vai e vem
Só esperar

E se eu mudei devo à você
Todo desamor que a vida me ensinou
Coração aberto, felicidade perto
Sou toda amor

Agradeço tanto, agradeço por você
Não ser do jeito que eu sou
Agradeço tanto, agradeço por você
Não ter me dado o seu amor

13 maio 2010

133. Cantada

Para que servem as palavras depois de ter aquele alguém que faz tudo sair do eixo? Afinal, as palavras não servem para o que sentimos. É com esta sensação de completude, e plenitude, de viés, que o sujeito de "Cantada" (Cantada, 2002) canta o outro, no fundo, para cantar a si mesmo.
A atmosfera do ambiente - do pós sexo - atravessa a canção, indicando o atravessamento do sujeito pela delícia do momento. O tempo (horas) e o espaço (ruas/liberdade) ficam em suspensão, para que o sujeito, mergulhado no gozo avassalador, morra/viva nos braços do amado amante.
A oposição noite/calor (como se não houvessem noites quentes) amplia a ideia de que, juntos,os dois criam uma tarde turquesa (quarenta graus). Tudo lateja dentro e fora, "depois de ter você".
O outro (o duplo do eu, de mim) é a própria poesia. Poetas para que? Nem mesmo o consolo espiritual e nem as dúvidas cientificistas fazem mais sentido algum diante da descoberta insofismável de "ter você".
Ao final, a pergunta "para que serve uma canção como essa?", mostra que, além de termos no ouvido uma metacanção (uma canção que fala sobre si), ouvimos o canto da dúvida das essências. No fundo, toda metacanção indicia uma metafísica, ou seja, uma discussão sobre as grandes perguntas.
O sujeito quer, a partir do canto, criar outra realidade. Para tanto, põe em dúvida a verdade de tudo aquilo que o ouvinte (o destinatário da cantada?) pode ter como realidade empírica. De fato, é a ficção que cria a realidade.
Ou seja, "depois de ter você" o pensamento do sujeito pensa. Entramos no campo da filosofia: a manutenção da dúvida. A dúvida da dúvida.
O sujeito de "Cantada", com seu argumento espiralado, entontece o outro que, irresistivelmente, cai, na impossibilidade de réplicas.
Desde o ventre materno (o close na boca, na capa do disco, é índice da caixa sonora no centro do "buraco negro", do útero-paraíso do sujeito), somos cantados. Estar na vida e se deparar com um canto assim, depois de sermos e termos, é a busca (inconfessa) de todos nós.

***

Cantada (Adriana Calcanhotto)

Depois de ter você
pra quê querer saber
que horas são?
Se é noite ou faz calor
se estamos no verão
se o sol virá ou não
ou pra que é que serve uma canção
como essa?

Depois de ter você
poetas para quê?
os deuses, as dúvidas?
pra quê amendoeiras pelas ruas?
para que servem as ruas?
depois de ter você?

12 maio 2010

132. Eu só sei amar assim

"Eu só sei amar assim" (Bossa, 2001) é a voz do sujeito sempre insatisfeito com as possibilidades que o amor lhe apresenta. Sempre, e cada vez mais, fugidio, sempre algo que mina e escapa, sempre indefinível, o amor, desse jeito, não satisfaz mais o sujeito.
A letra curta, mas precisa, joga com as oposições "muito" e "nada" (excesso e falta / saber e desconhecer) para desenhar a inadaptação do ser diante do que o mundo lhe oferece; diante da falta (pelo excesso) de algo/alguém, de fato, seu.A contemporaneidade, com suas inúmeras opções de amor, também gera a angústia da indecisão. Não é fácil escolher. E escolher é imperativo, sempre. Ou não?
Ou seja, por mais plural, e talvez por isso mesmo, que o amor tenha se desenvolvido em suas expressões, o sujeito pontua o "seu jeito de amar". Diante da liberdade afetiva conquistada, ele se cansa do excesso e "exige" do outro "cada gesto, cada palavra, cada segundo da suas atenção". Cansado de sofrer, o coração se permite pensar que o amor pode, de repente, chegar e levar a dor "pra longe daqui". Afinal, "pra que rimar amor e dor?"
Podemos pensar no chamado (e malfadado) "amor romântico" querendo persistir no espaço da diversidade das parcerias e afetos. Podemos ouvir o sussurro absurdo desta insistência do "amor algo exclusivista" no desabafo ("Sabe, gente, é tanta coisa pra gente saber. O que falar, como andar, onde ir, o que dizer, o que calar, a quem querer...") do sujeito: "estou cansada de ouvir que eu só sei amar errado, estou cansada de me dividir".
Ele, que não sabe o que falar, calar ou querer do amor, mostra suas "limitações" e suas regras do jogo amoroso: "Eu quero te dizer que eu só sei amar assim". Cabe ao outro, também, aceitar, ou não, a sinceridade e, mais ainda, a verdade do sujeito. O recado foi dado.

***

Eu só sei amar assim (Herbert Vianna)

Muito pra mim é nada
Tudo pra mim não basta
Eu quero cada gesto, cada palavra
Cada segundo da sua atenção
Faça isso por mim
Leve a dor pra longe daqui
Estou cansada de ouvir
Que eu só sei amar errado
Estou cansada de me dividir

O que é certo no amor
Quem é que vai dizer
O que falar, calar e querer

Eu quero absurdos, quero amor sem fim
Eu quero te dizer que só sei amar assim

11 maio 2010

131. Estrela

A estrela é símbolo de guia e aspiração. Como ícone de aspiração e ponto de entrada no céu, ela tem orientado poetas desde sempre. Mas há vários adjetivos e significados para elas.
A que é cantada por Gilberto Gil remete-nos à "estrela" Vênus, com sua emblemática energia de vida e pulsão sexual. Afinal, o sujeito canta para um destinatário - ocê -, cujo movimento de chorar ou sorrir afeta a alma cósmica.
Bússola e desorientação, a estrela do texto, emoldurado por uma melodia quente e terna, surge e se apaga "apenas" para ver a flor do sorriso do outro (amado do sujeito) se abrir.
O momento é de pura entrega e paixão. As sensações que vão de um para o outro são metaforizadas e eternizadas no canto que sobe aos céus. De fato, "Estrela" (Quanta, 1997) é um convite, real e de viés, para que os dois possam aproveitar as coisas simples da vida.
Como o sujeito da canção "Sobre todas as coisas", de Chico Buarque, o sujeito de "Estrela" perssuade o outro a, com ele, adorar o criador através da imersão nas coisas que Ele consentir. Entre essas coisas: o encontro dos dois.
O mundo é o altar da comunhão dos amantes, sem pecado e sem juízo final; e o céu, de uma forma ou de outra, sempre estará estrelado, coroando o amor. Só assim, sim, a vida vale a pena. Fora daí tudo é ilusão e mentira.

***

Estrela
(Gilberto Gil)


De surgir
Uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir

De apagar
Uma estrela no céu cada vez que ocê chorar

O contrário também bem que pode acontecer
De uma estrela brilhar quando a lágrima cair
Ou então de uma estrela cadente se jogar
Só pra ver a flor do seu sorriso se abrir

Hum
Deus fará
Absurdos, contanto que a vida seja assim
Sim
Um altar
Onde a gente celebre tudo o que Ele consentir

10 maio 2010

130. Ilegais

"Ilegais" apresenta um casal que dá bandeira da relação entre os dois. O sujeito sente receio pelo que pode acontecer caso as malígnas línguas importunem o encontro (o desassossego dos corpos) dos dois.
Tudo passa pelo olhar: "esse seu olhar quando encontra o meu". É o olhar que entrega os amantes, denuncia o clamor fugaz dos dois.
Diante da caretice que toma conta dos temas amorosos na canção, "Ilegais", com o desejo do sujeito de ter o outro "pertinho, dentro, em cima de mim", incendeia os sentidos do ouvinte. "Eu quero você", finaliza o sujeito, cravando as marcas do desejo (paixão) no seu canto.
As repetições em diferenças do texto (veloz - feroz / malígnas línguas - pura hipocrisia) aproximam a canção de Vanessa da Mata à letra de "Imorais", de Zélia Duncan e Christiaan Oyens.
Nesta canção o sujeito aponta: "Os imorais falam de nós, do nosso gosto, nosso encontro, da nossa voz". E conclui: "um dia, eu sei, a casa cai e então a moral da história vai estar sempre na glória de fazermos o que nos satisfaz".
A semelhança dos discursos dispara significantes que indiciam o desejo de brilho, estilo e liberdade afetiva.
Na versão ao vivo - disco Vanessa da Mata ao vivo (2009), registro da turnê Perfumes de sim - Vanessa inclui, como música incidental, "You Don't Love Me (No, No, No)". Cantada ao modo da cantora jamaicana Dawn Penn, a canção adensa o ritmo e os significados de "Ilegais". O balanço da rede de intrigas, sobre a qual os amantes se devoram, é regido pela consciência da ilegalidade, do desvio da chatice.

***

Ilegais
(Vanessa da Mata)

Desse jeito vão saber de nós dois
Dessa nossa vida
E será uma maldade veloz
Malignas línguas
Nossos corpos não conseguem ter paz
Em uma distância
Nossos olhos são dengosos demais
Que não se consolam, clamam fugazes
Olhos que se entregam, ilegais

Eu só sei que eu quero você
Pertinho de mim
Eu, quero você dentro de mim
Eu, quero você em cima de mim
Eu quero você

Desse jeito vão saber de nós dois
Dessa nossa farra
E será uma maldade voraz
Pura hipocrisia
Nossos corpos não conseguem ter paz
Em uma distância
Nossos olhos são dengosos demais, demais
Que não se consolam, clamam fugazes
Olhos que se entregam, olhos ilegais

Eu só sei que eu quero você
Pertinho de mim
Eu, quero você dentro de mim
Eu, quero você em cima de mim
Eu quero você

09 maio 2010

129. No tabuleiro da baiana

Para Juliana Lira

Ary Barroso, além de cantar os quitutes no Brasil, cantou também as belezas do povo (das mulatas, principalmente). "No tabuleiro da baiana" e "Na baixa do sapateiro", entre vários exemplos, apontam para isso.
Na versão de João Bosco e Daniela Mercury, lançada do Songbook Ary Barroso (Disco 1, 1995), "No tabuleiro da baiana" ganha novos significantes, a medida em que o diálogo interno da letra se faz visível pela sobreposição das vozes dos intérpretes.
Iôiô e iáiá se encontram para cantar o encantamento. Iôiô (estrangeiro) anuncia e iáiá (bela de si) responde elencando suas delícias encantatórias. Ao mesmo tempo em que o próprio iôiô aponta o que mais lhe chama atenção, entre as coisas oferecidas.
Desde os delicados "floreios" vocais que abrem a canção, até o imbricamento entre o texto e a doce melodia, os índices de aproximação entre os dois figurativizam o jogo amoroso. Do tabuleiro ao coração da baiana, o sujeito percorre uma trilha de sensações que lhe embriaga os sentidos.
Candomblé e Senhor do Bonfim abençoam a junção dos trapinhos (das vozes, das pré histórias) dos amantes. Encantado, ele quer ser o iôiô de iáiá. Eles se unem sem saber o que será dos dois. Mas quem saberá?
A performance vocal de João Bosco e Daniela Mercury personifica os sujeitos, cria novos sentidos e embala o ouvinte feliz pelo encontro dos dois: iôiô e iáiá, ambos um do outro. Até que a fila ande e outro comprador apareça na frente do tabuleiro da baiana.

***

No tabuleiro da baiana (Ary Barroso)

No tabuleiro da baiana tem
Vatapá
Caruru
Mungunzá
Tem umbu
Pra ioiô

Se eu pedir você me dá
O seu coração
Seu amor de iaiá

No coração da baiana tem
Sedução
Canjerê
Ilusão
Candomblé
Pra você

Juro por Deus
Pelo senhor do Bonfim
Quero você, baianinha, inteirinha pra mim
E depois o que será de nós dois
Seu amor é tão fulgáz, enganador

Tudo já fiz
Fui até num canjerê
Pra ser feliz
Meus trapinhos juntar com você
E depois vai ser mais uma ilusão
No amor quem governa é o coração

08 maio 2010

128. Coisa acesa

Lançado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, Quando fevereiro chegar - Uma lírica de Fausto Nilo (2010) é uma pérola de tão raro e bonito.
As 12 gravações, feitas por participações de Elza Soares, Fernanda Takai, Ivan Lins, Zeca Baleiro, Carlinhos Brown, Zé Ramalho, entre outros, valorizam as sutis e belas composições (algumas em parceria) de Fausto Nilo.
Uma homenagem mais do que merecida, necessária, para um país tão carnavalesco e carnavalizante (com seu multiculturalismo tropical) como o nosso.
Ouvir Quando fevereiro chegar é perceber a proximidade do bloco do prazer e deixar o barco correr solto, atravessar os sete mares para curtir o chamego do nêgo. E é exatamente o que o sujeito de "Coisa acesa" faz.
Interpretada por Caetano Veloso, com a desenvoltura de quem já compôs frevos imortais (o disco Muitos carnavais atesta isso), "Coisa acesa" virou um frevo-canção. Ela tem a pulsação (o tema) do ritmo que sacode os corpos pelas ruas antigas (fazendo as pedras cantar e a coisa acender), mas combinada com o "q" de dengo e de chamego (nêgo pára, mas não pára não) que figurativiza as aproximações e charmes dos foliões.
Ou seja, o sujeito desenhado por Caetano investe mais no texto (rimas e imagens) para compor um sujeito que no jogo do pára, não pára, se embala e se embola com seu nêgo, enquanto a terça certa não chega.
O cancioneiro de nosso carnaval é riquíssimo e plural, as composições de Fausto Nilo apontam isso. Recuperar e religa-lo aos novos ouvidos é tarefa (prazerosa) e imprescindível.

***

Coisa acesa
(Fausto Nilo / Moraes Moreira)

Atravessei os sete mares
e por todos os lugares
por onde andei
você me dava a vida
foi uma dádiva da natureza
essa coisa acesa
que hoje vejo em ti
não acredito
nem que o mundo chora
foi bonito agora
vi você sorrir

Chega nêgo, nêgo, nêgo, nêgo
nêgo, nêgo, pára
chega nêgo, nêgo, nêgo
seu chamego para mim
tudo que me
dá sossego
é assim
chega nêgo, nêgo, nêgo
vem pra mim

07 maio 2010

127. Carimbador maluco

Para Zeza Alves

Cansadas das proibições do mundo adulto, as crianças decidem fugir para um lugar mítico de liberdade. Porém, durante a contagem regressiva para a partida da nave, aparece o carimbador maluco para executar o controle do imaginário infantil. Uma possível referência à burocracia das instituições, que insistem em brecar o movimento das coisas?
Enfim, este é, a grosso modo, o resumo da ação de Plunct Plact Zum (1983), do tempo em que a TV fazia musicais (inclusive infantis).
A canção (que está também no disco Raul Seixas, 1983) apresenta outra face de Raul Seixas. Lírica, mas não menos atenta e ferina, visto que "anárquica", com os censores (patrulhas ideológicas) de então, a canção diverte e encanta crianças de todas as idades, desde que foi lançada.
O carimbador maluco, certamente, guarda semelhanças com o chapeleiro maluco criado pelo escritos Lewis Carroll, no livro Alice no país das maravilhas. De certo modo, os dois personagens abrem (redimensionam) as perspectivas das histórias.
Vencida a burocracia, que pode ser lida como nossas auto censuras também, nossos limites interiores, o importante é seguir viagem e conquistar novas possibilidades de vida.

***

O carimbador maluco (Raul Seixas)

Cinco, quatro, três, dois
Parem, esperem aí
Onde é que vocês pensam que vão?
hã hã

Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum
Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum

Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado e rotulado se quiser voar
Se quiser voar
Pra lua, a taxa é alta
Pro sol, identidade,
Vai já pro seu foguete viajar pelo universo
é preciso o meu carimbo dando sim sim sim sim

Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum
Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum

Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês
Aventura como esta eu nunca experimentei
O que eu queria mesmo era ir com vocês
Mas já que eu não posso, boa viagem
E até outra vez

Plunct Plact Zum
Pode partir sem problema algum
Plunct Plact Zum
Pode partir sem problema algum

Boa viagem

06 maio 2010

126. Preciso dizer que te amo

Para Marianne Cavalcante

"Preciso dizer que te amo" trata de um amor que surge da convivência fulgás entre o sujeito enunciador e seu destinatário. Aparentemente, amigos (que amigos), o sujeito descobre um outro sentimento, que precisa ser dito. Para evitar, ou não, a dor ("você se abre e acaba comigo").
A canção tematiza a difícil, complexa e complicada transição da amizade ao amor. Aquele momento em que, sabendo que, talvez, o outro não tenha os mesmos interesses, sofremos calados, ouvindo as dores amorosas do outro.
Diferente das versões, algo mais intimistas, visto que lêem a canção por uma perspectiva do sujeito angustiado pela descoberta e pela dúvida em dizer ou não, a versão de Leo Jaime (Todo amor, 1995) opta por uma balada que aponta para o efetivo "dizer" desse amor.
Ou seja, o sujeito criado por Leo Jaime canta o amor para o seu objeto de desejo. Ele aposta que, ganhando ou perdendo, dizer o amor é necessário e urgente. Enquanto que as interpretações intimistas (de certa forma, complementar à feita por Leo Jaime), vide Cássia Eller, Marina Lima e Cazuza com Bebel Gilberto (cada qual com suas especificidades) enfatizam a análise interior feita pelo sujeito.
Até o desenho visual muda. O sujeito de Leo Jaime parece se despir de receios e partir para o confronto. Ele "cria" a hora de dizer: eu te amo, tanto.

***

Preciso dizer que te amo
(Dé/ Bebel Gilberto/ Cazuza)

Quando a gente conversa contando casos, besteiras
Tanta coisa em comum, deixando escapar segredos
E eu não sei que hora dizer, me dá um medo (que medo)

Eu preciso dizer que te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Eu preciso dizer que te amo tanto

E até o tempo passa arrastado só pra eu ficar ao teu lado
Você me chora dores de outro amor, se abre, acaba comigo
E nessa novela eu não quero ser teu amigo (que amigo)

Que preciso dizer que te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Que eu preciso dizer que eu te amo, tanto

05 maio 2010

125. Gatinha manhosa

Para Monica Maria

O gato é conhecido por sua habilidade sensual e maliciosa. A mulher, na tradição da canção popular, é apresentada como aquele ser que possui o "dom de iludir". Portanto, uma gata (metáfora-gíria para mulher bonita), além do mais, manhosa, representa a persuasão sexual ambulante: em grau máximo!
O sujeito da canção aponta isso ao dizer:"não precisa falar comigo dengosa assim". Ora, se ela já consegue os mil carinhos dele (com beicinhos e choros baixos), o que dirá quando agregar a isso o dengo e a manhosidade explícita? O enroscar nas pernas do sujeito?
Ele sabe do poder (de mentir) da mulher-gata - "já não acredito se você chora dizendo me amar, eu sei que na verdade carinhos você quer ganhar". No entanto, ele não resiste ao gesto todo felino, todo dela. De quem chega e, disfarçadamente, sem querer querendo, amolece o coração de leão do sujeito.
Ambos felinos, pois ele sabe também, dissimuladamente, que prendê-la seria perdê-la. Ele ameaça, ela faz manha e os dois se aninham entre arranhões (íntimos e doces).
Encantado, mamar tornar-se imperativo. O leite (da gata), que alimenta a reiterativa ilusão (não esqueçamos as teias de persuasão e fingimentos das gatas) de afeto do sujeito da canção, está indiciado na capa do disco (Mulher, 1981). Alí, Erasmo Carlos mama na teta de sua vera gata, se rende, sob uma imagem (contornos sutis) que se dilui no branco leite bom.

***

Gatinha manhosa
(Erasmo Carlos / Roberto Carlos)

Meu bem
Já não precisa
Falar comigo
Dengosa assim

Briga, para depois
Ganhar mil carinhos de mim

Se eu aumento a voz
Você faz beicinho
E chora baixinho
E diz que a emoção
Dói seu coração

Já não acredito
Se você chora
Dizendo me amar
Eu sei que na verdade
Carinhos você quer ganhar

Um dia gatinha manhosa
Eu prendo você
No meu coração
Quero ver você
Fazer manha então
Presa no meu coração
Quero ver você

04 maio 2010

124. Amor I love you

Memórias, Crônicas e Declarações de Amor (2000) é um relicário imenso desse amor. Do amor que se (auto)proclama; se (auto)elogia; e urge pela presença física do ser amado. Amor que, contraditoriamente, acalma, acolhe a alma e ajuda a viver.
Este tipo de amor (liberto, libertário e libertador) se opõe ao 'amor romântico', ficção que alimenta a vaidade e demonstra a 'incapacidade' (toda humana) de viver no mundo sem enquadra-lo.
Mas, se só se sabe amar assim, de todo modo, amemos. E é isto que o sujeito de "Amor I love you" faz. Se seremos "felizes para sempre" é outra história, uma construção diária de encontros e desencontros íntimos.
"Amor I love you" é o canto que pede para se dizer - "Deixa eu dizer que te amo" - e é o gostar que pede para se fazer gosto - "Deixa eu gostar de você". O sujeito, ao respeitar a subjetividade alheia, canta um sentimento (superiormente interessante) que apenas quer estar presente. A expressão-título - amor I love you - aponta para isso: "Baby, leia na minha camisa, I love you". Ou seja, chega de contar "pras paredes", hasteiam-se bandeiras: I love you!
A participação do Arnaldo Antunes (com sua voz gravíssima) lendo o excerto (pinçando com precisão cirúrgica) de Primo Basílio, se contrapõe aos vocalizes (suspiros) de Marisa Monte. Isso tenciona e equilibra (diálogo erótico masculino/feminino) o arco teso da promessa. O peito dispara. É o amor (com suas sentimentalidades) que está aqui. Amor e love (o toque das línguas) redundante e excessivamente fazendo a alegria de viver.

***

Amor I love you
(Carlinhos Brown / Marisa Monte)

Deixa eu dizer que te amo
Deixa eu pensar em você
Isso me acalma, me acolhe a alma
Isso me ajuda a viver

Hoje contei pras paredes
Coisas do meu coração
Passei no tempo
Caminhei nas horas
Mais do que passo a paixão
É um espelho sem razão
Quer amor fique aqui

Meu peito agora dispara
Vivo em constante alegria
É o amor quem está aqui

Amor I love you
Amor I love you
Amor I love you
Amor I love you

(...) Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações! (Primo Basílio - Eça de Queiroz, 1878)

03 maio 2010

123. Tatuagem

Registrada no histórico disco Drama 3º ato (1973) - gravado ao vivo no Teatro da Praia RJ - "Tatuagem" apresenta todo o sentimento de um sujeito que quer se entranhar corpo adentro, do outro. O uso da tatuagem, como metáfora desta vontade, porém, esconde desejos inconfessos.
A tatuagem (como desenho permanente na pele, marcado a frio, a ferro e fogo) é também uma forma de mostrar aos outros quem é o 'dono' daquele corpo. A tatuagem estabelece uma relação de fidelidade entre os amantes. Porém, ao evocar a serpente, o sujeito indicia traições inconfessas.
Portanto, há um sedutor paradoxo quando o sujeito diz: "também pra me perpetuar em tua escrava". No jogo/embate erótico (cruz nas tuas costas que te retalha em postas, mas no fundo gostas), afinal, quem é escravo de quem? Quem canta querer ser tatuagem ou quem é tatuado? Pouco importa.
É com estes pensamentos - de posse e de desejo absurdamente passionais - que a interpretação de Bethânia exibe a parte mais clara da alma do sujeito da canção. Bethânia toma para si o movimento serpenteante do sujeito na carne viva do outro.
Pétala por pétala, as rimas e as respirações (extremamente marcadas pela ênfase na consoante 'r') criam a imagem da bailarina brincando no corpo do outro.
"Tatuagem", composta para a peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, na interpretação de Bethânia, em que cada letra é meticulosamente dita, cantada e ouvida, arrebata o ouvinte que, seduzido, se deixa tatuar.
A canção fica na memória da pele (como um canto de sereia, ou reduzido a um esconderijo tatuado) e, vira e mexe, em carne viva, nos lembra dos (des)domínios dos afetos.

***

Tatuagem (Chico Buarque / Ruy Guerra)

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava

Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço

Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva

Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes