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31 julho 2010

212. Da cor do pecado

Para Gilmar

A voz de Ângela Maria (cantora excepcional) é a prova (se é que ainda precisamos de provas) de que a canção que precedeu a Bossa Nova (clean e moderna) não é ruim, como certa crítica deseja pintar. Esquecida pelos livros, a fase pré Bossa Nova merece ouvidos livres.
Essa "música romântica" ainda é consumida (e muito), apesar do abandono midiático. Os retratos da dor de cotovelo e da vida no morro eram o motor da voz. Não sei se tais temas, com as adequações - de gosto, de contexto, de mercado, etc - devidas, tenham sumido. Pelo contrário.
Para Liv Sovik (no livro Aqui ninguém é branco), "o discurso do amor romântico frustrado, torna-se veículo de expressão de uma briga entre homens por autoridade, prestígio, dinheiro".
Assim, uma canção como "Da cor do pecado", de Bororó, refletia, para além de um desejo erótico, a exposição de nossas relações (brasileiras) com o corpo (da cor de canela).
Ainda para Sovik, "Ângela Maria e sua música existiam no limiar entre ser negro, ou "sapoti", e a suspensão dessa identidade". Ou seja, a cor dessa cidade (desse país) sou eu: Ângela Maria, com plástica para afinar o nariz.
Ângela encarna a cor do pecado: a cor que excita a libido do sujeito da canção. A voz de
Ângela dialoga com o texto da canção e com o sujeito que, estimulado pelo imaginário que afirma não existir pecado do lado debaixo do equador, se lança na descrição (deleite) da musa híbrida.
Aqui, abaixo de equador, o corpo é o dispositivo de afirmação do desejo. Um corpo queimado de sol, ardido de mar. O arranjo de "Da cor do pecado" (Sucessos de ontem na voz de hoje, 1956) intensifica o clima de sedução, malícia e desejo. Além de apontar nossas entranhas identitárias: a valoração do corpo da mulher negra.
Não podemos esquecer que João Gilberto (a Bossa Nova) gravou "Da cor do pecado". Outros sentidos são destacados, outros ouvidos são afetados. Mas Ângela Maria (com seus arroubos e floreios vocais) radicaliza e ilumina expressões gestuais e afetivas mais corporais.

***

Da cor do pecado
(Bororó)

Esse corpo moreno, cheiroso e gostoso
que você tem, é um corpo delgado
da cor do pecado que faz tão bem
e esse beijo molhado, escandalizado
que você me deu
tem um sabor diferente
que a boca da gente
jamais esqueceu

E quando você me responde
umas coisas com graça
a vaidade se esconde porque se revela
a maldade da raça
e esse cheiro de mato tem cheiro de fato
saudade tristeza essa simples beleza
teu corpo moreno, morena enlouquece
e eu não sei bem por quê
só sinto na vida
o que vem de você

30 julho 2010

211. Realce

A alegria é a força maior. A tristeza, seu avesso, existe para nos situar no mundo. O (des)equilíbrio entre ambas - alegria e tristeza - exprime quem somos. Mas, sendo aquela o motor que nos dá luz, quanto mais investirmos nela (quanto mais purpurina) melhor.
"Realce", de Gilberto Gil (Realce, 1979) é pura dança e sexo e festa e glória: saturday night fever. A canção se desdobra para dentro de si, ao proliferar em seus versos a purpurina que realça o brilho de existir: e poder cantar e dançar aos deuses da glória.
Sua letra de mensagem fácil, aliada à melodia festiva (de empatia rápida), monta uma canção "pra cima": apontando para o lado bom, mesmo das coisas ruins (tristes). Aliás, em sentido mais profundo, ser feliz é saber que a tristeza também tem sua função na engrenagem da vida.
Ou seja, viver (e não ter a vergonha de ser feliz) passa pela ênfase na "impotência que se torna potência". E "Realce" é um hino à vida e à alegria que não cansa de se auto-afirmar: é um canto em defesa da permanência do SIM.
Gil traduz, assim, interesses da filosofia para a canção popular. De mãos dadas com Nietzsche, que afirmou que só acreditaria "em um deus que soubesse dançar", Gil cria um canto de celebração do corpo que baila sobre (e dentro) da vida que roda; agrega todos na gira; sobe no palco e brilha - "gente é pra brilhar, não pra morrer de fome", como Caetano Veloso canta.
Tudo é interessante e tem seu mistério. "Realce" justapõe várias imagens do cotidiano e significantes da cultura de massa (comum e tida como superficial) realçando o poder de cada (mínima) coisa na composição da vida.
Pagar para saber o que pode e o que não pode dar certo é função toda humana: assumir (des)limites - "O que a gente não pode, explodirá". Cuidar e descuidar (se distrair) da vida são movimentos que afirmam a vida: "se você não se distrai o atraso vira espera e sufoca", como Zélia Duncan canta.
A vida se insinua a cada verso da simples e sofisticada "Realce". Dançar, ou não dançar, é escolha, mas também é imposição da natureza (autonomia da vida sobre nós): discernir o quanto seremos afetados (e o que fazer com este afeto) é que são elas. No final, como Ken Hanes sugere no seu divertido Guia prático para a vida gay: "O mundo é um palco. Vista a roupa do personagem que está representando".
A fonte da força (neutra) está à disposição de todos. Basta cada um saber realçar (purpurinar: espalhar brilho) aquilo que melhor lhe jogue para cima: transcendência e afirmação reiterada da vida. Somos o nada (as grandes catástrofes dizem isso), mas somos, também, o tudo (energia do motor da natureza): polaridades complementares e interpenetráveis. O eterno retorno (em diferença) - o gesto cíclico da vida - nos atravessa e é atravessado por nós, com tudo de real teor de beleza.

***

Realce
(Gilberto Gil)

Não se incomode
O que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta
E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá

Realce, realce
Quanto mais purpurina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza

Não se impaciente
O que a gente sente, sente
Ainda que não se tente, afetará
O afeto é fogo
E o modo do fogo é quente
E de repente a gente queimará

Realce, realce
Quanto mais parafina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza

Não desespere
Quando a vida fere, fere
E nenhum mágico interferirá
Se a vida fere
Como a sensação do brilho
De repente a gente brilhará

Realce, realce
Quanto mais serpentina, melhor
Realce, realce
Com a cor do veludo
Com amor, com tudo
De real teor de beleza

29 julho 2010

210. Sintonia

Egresso do grupo Novos baianos, Moraes Moreira tem aquela coisa acesa que esquenta qualquer plateia. Seu investimento na festa (no carnaval), além do flerte com outras paisagens sonoras, já lhe rendeu vários sucessos.
"Sintonia", de Fred Góes, Zeca Barreto e Moraes Moreira, fez parte da trilha da novela Hiper tensão e imprimiu (embalou) o arco teso da promessa do desejo de muitos telespectadores.
Do disco Mestiço é isso (1986), a canção "Sintonia" apresenta um sujeito que (ao revés) seduz a sereia: agora é o sujeito-ouvinte quem canta para levá-la ao mergulho no gozo do afeto. Tudo mais parece uma revanche (amorosa e dengosa), já que, naturalmente, é a sereia quem seduz.
A bonita introdução instrumental nos remete às antigas serenatas, quando um sujeito declarava seu amor e convidava o objeto de desejo para viverem juntos este amor, omitindo (malandramente) suas intenções, digamos, menos pudicas.
Metacanção (canção que canta a si mesma), "Sintonia" é feita para tocar no rádio, espalhar-se pelas fibras da cidade e chegar aos ouvidos da sereia: no rádio do coração. Sintonizados na mesma estação, as personagens se ligam pelo poder de união da canção.
Cheia do jogo erótico, a canção reflete o atrapalhamento dos corpos lançados ao mar do prazer, ao misturar os instrumentos e os gestos vocais do cantor. Volumes aumentados, humanidades crescidas e picuinhas do ciúme criam o clima perfeito para que a sereia seja (agora ela) arrastada para o estado de morte e vida.
Ela, que canta a vida do sujeito, sabe o nome dele (mas não lhe chama, posto que nomear a coisa é perder a coisa), reconhece-o pela voz: afinal, ele a ama. O sujeito penetra o reino da sereia: ondas de um mar que é bonito quando quebra na praia deliram e chamam os dois. O sujeito faz a sereia bailar num vai e vem de corpos encantados e enamorados. E da espuma deste mar (encontro) nasce o amor (o canto).
O pedido do sujeito já é o desejo pulsando. Nós, ouvintes, invadimos a intimidade das personagens deste jogo erótico, deliciando-nos com o despudor da canção que canta a si mesma metaforizando o sujeito (o canto) que nos encanta. Somos, no final da ressaca, os destinatários deste canto: desta canção que toca no rádio do nosso coração e nos lança no mar da ilusão.

***

Sintonia
(Fred Goés / Zeca Barreto / Moraes Moreira)

Escute essa canção
Que é prá tocar no rádio
No rádio do seu coração
Você me sintoniza
E a gente então se liga
Nessa estação

Aumente o seu volume
Que o ciúme
Não tem remédio
Não tem remédio
Não tem remédio não

E agora sim aqui prá nós
Pelo meu nome não me chama
Você é quem conhece mais
A voz do homem
Que te ama

Deixa eu penetrar
Na tua onda
Deixa eu me deitar
Na tua praia
Que é nesse vai e vem
Nesse vai e vem
Que a gente se dá bem
Que a gente se atrapalha

28 julho 2010

209. Certas canções

Para o medievalista Paul Zumthor (no livro A letra e a voz), "a voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia sobreviver". Com seus diversos intérpretes, a voz poética (auxiliada pelos modos de difusão oral), está em toda a parte. Essa voz atravessa, assim, nossos discursos cotidianos, mantendo a memória (reserva da identidade); e presentificando o passado: a única certeza (quase) estável.
Zumthor argumenta que a voz poética - no instante da performance vocal - produz a função essencial da poesia, ou seja, “a maravilha de uma presença fugidia, mas total". Diferente da escritura que, com o excesso de fixidez, perde o momento único.
"Certas canções", de Tunai e Milton Nascimento (Ânima, 1982), fala disso, na medida em que podemos ouvir a voz de um compositor que admira o poder de arrebatamento (força motriz) filosófico-poético de canções não compostas por ele. Mas que cabem tão dentro dele que o sujeito deseja tê-las feito. O que encanta o sujeito é aquilo que poderia ter sido dito (por ele) e não foi.
Diferente do invejoso (que quer tomar o lugar do outro), o sujeito de "Certas canções" demonstra admiração pela multiplicidade de vozes. Ele traz para o seu canto a experiência de sentir outros cantos: alheios e tão íntimos. Ele não nega o outro, ao contrário, estabelece uma relação de fratria com o outro: buscando a sobrevivência de todos.
O ouvinte se torna cúmplice, facilmente. Afinal, quantas vezes, ao ouvir uma canção, dizemos: "parece que foi feita para mim"? Ou seja, para determinada situação de nossa existência. Eis a força persuasiva da voz poética: uma mesma audição (coletiva) será recebida por cada ouvinte de forma ímpar.
De modo diferente, já que ele é um compositor, o sujeito de "Certas canções", além de ser afetado pela canção, não entende como ela (tão dele) não tenha sido feita por ele. A comoção sentida pelo sujeito é o motivo de sua canção sobre (certas) canções: aquelas que lhe chegam como o amor.
Para Maurice Blanchot (no livro O espaço literário), "a poesia não é dada ao poeta como uma verdade e uma certeza de que ele poderia aproximar-se; ele não sabe se é poeta, mas tampouco sabe o que é ser poesia, nem mesmo se ela é; ela depende dele, de sua busca, dependência que, entretanto, não o torna senhor do que busca mas torna-o incerto de si mesmo e como que inexistente". Tais palavras, sem dúvidas, dizem muito do sujeito de "Certas canções".
A voz bela, e de clima terno, de Milton Nascimento empresta vida ao estado singular do sujeito de "Certas canções". Este sobrepõe imagens e acelera (um pouco) o andamento na tentativa de reter a magia das revelações tão fugidias que tais sereias lhe fazem.
Se for verdade que onde estiver nosso coração ali estará o tesouro ("calor que invade, arde, queima, encoraja") de nossa existência, o coração ("amor que invade, arde, carece de cantar) do cantor está no canto - na performance: naquilo que existe enquanto dura, escapando pelos interstícios dos sons. E destes também depende o emissário: nós, ouvintes.

***

Certas canções
(Tunai / Milton Nascimento)

Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gesto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar

27 julho 2010

208. Esconderijo

Para o sujeito de "Esconderijo", de Ana Cañas (Hein?, 2009), está para a solidão assim como o ar procura o chão. O sujeito tenta mostrar que tais gestos são da natureza de ambos. Assim como a chuva só desmancha pensamento sem razão.
O sujeito parece não querer sair do seu esconderijo (esfera protetora). A canção quase não começar: as hesitações da melodia (na introdução) indiciam o estado interno do sujeito.
A canção "fala" da procura (toda humana) de paz interior: calma. E é na arte (do seu jeito) que um esconderijo possível pode surgir. A ficção (a verdade estética), a única verdade possível, é o abrigo preciso.
O sujeito traz elementos (comparações) do ritmo ontológico da vida para justificar sua procura pessoal, para criar seu cenário. O movimento: do barulho ao silêncio.
Beijo (para parar) e teto (para seguir), eis as estações do sujeito, na companhia de um receptor que lhe ajudará a construir o sentido na história dos dois.
A letra curta é cantada duas vezes: segundo tempo para as conquistas. Aliada à melodia circular. A canção amplia (ratifica) o percurso íntimo do sujeito. Tudo caminha junto, desconstruindo e construindo tetos, abrigos (esconderijos), bolhas de proteção: à espera da próxima serpente para explodi-la.

***

Esconderijo
(Ana Cañas)

Procuro a solidão
Como o ar procura o chão
Como a chuva só desmancha
Pensamento sem razão

Procuro esconderijo
Encontro um novo abrigo
Como a arte do seu jeito
E tudo faz sentido

Calma pra contar nos dedos
Beijo pra ficar aqui
Teto para desabar
Você para construir

26 julho 2010

207. Grand' hotel

Eis a expressão que machuca o coração: "se...". Tudo aquilo que vier a ocupar o espaço das reticências apontará (sempre) para certo sentimento de caminho errado: trilhas mal feitas no percurso da existência.
Quando aplicado à relação erótico-afetiva, então, o "se" intenta averiguar o que poderia ter sido melhor: em qual parte da estrada os amantes se perderam um do outro.
De fato, sabemos que os motivos, para o erro (o fim), podem ser vários. O que nem sempre percebemos é que o desenvolvimento de toda relação depende da sua introdução. É o início que guarda o segredo. Senão, basta prestar atenção e perceber que aquilo que cobramos, no outro, e que consideramos como mudanças (que estimulam o fim), já estava ali desde sempre.
O sujeito de "Grand' hotel" chama para os dois parceiros a responsabilidade dos males. De Tudo é permitido (1991), disco com apelo erótico flamejante, a canção tem mensagem direta: diálogo dos (des)afetos. Hino da separação.
A bela introdução melódica dá lugar à voz baixinha e incerta de um sujeito (interpretado pela Paula Toller) que tenta entender um pouco mais a alma de uma relação, que tinha tudo para dar certo mas se transformou em "bom dia".
O sujeito que acreditava na parceria como instauradora da alegria de viver, agora pensa que o segredo da felicidade é ficar só. Desencantado, ele tenta entender o sentido da realidade: que para ele era a parceria.
As certezas foram desfeitas: pequenas vinganças. O sentimento foi abalado: palavras ditam para ferir. A separação surge como única saída. Ele sofre pelo que poderia ter sido: por não terem respeitado o tempo (feito para durar) do afeto.
Mas quem sabe a hora certa de calar e de dizer? Amantes e sófregos de paixão (afim de mais uma dose), atropelamos etapas que poderiam ser fundamentais (fundadoras) da permanência do carinho e da cumplicidade.

***

Grand' hotel
(George Israel / Paula Toller / Lui Farias)

Se a gente não tivesse feito tanta coisa
Se não tivesse dito tanta coisa
Se não tivesse inventado tanto
Podia ter vivido um amor Grand' Hotel

Se a gente não dissesse tudo tão depressa
Se não fizesse tudo tão depressa
Se não tivesse exagerado a dose
Podia ter vivido um grande amor

Um dia um caminhão atropelou a paixão
Sem teus carinhos e tua atenção
O nosso amor se transformou em "Bom dia"

Qual o segredo da felicidade?
Será preciso ficar só pra se viver?
Qual o sentido da realidade?
Será preciso ficar só pra se viver?

25 julho 2010

206. Tigresa

"Tigresa", de Caetano Veloso, é metacanção na medida em que temos um sujeito compositor contando (cantando) a beleza de compor uma canção: a tigresa que lhe acontece, durante o processo de feitura.
A tigresa é a própria canção: é a vida, do cancionista (do poeta), para ser ouvida (lida) no supra-senso. Caetano, certa vez, afirmou: "As minhas letras são todas autobiográficas. Até as que não são, são". "Tigresa" prova isso ao tirar os véus do instante exato da composição; ao borrar os limites entre real e ficção.
É no processo de compor que o cancionista entra em contato com estágios profundos de si. O leão (Caetano) é devorado pela tigresa (Caetano): filigranas do mesmo indivíduo. É assim que entendemos, também, quando o mesmo Caetano Veloso afirma: "Não sou branco, nem homem". Ele é e não é, pode e não pode ser. Homo ludens, o artista joga com as instâncias da vida.
Daí que a performance vocal de Maria Bethânia (Pássaro da manhã, 1977) dispara sentidos ambíguos e andróginos: Bethânia e Caetano (irmãos); tigresa e leão (amantes); canção e cancionista (interdependentes). Côncavos, convexos e reconvexos. Avesso do bordado, um do outro. Infinitamente, um no outro. A criação como o duplo do criador, e o contrário disso.
"Tigresa" é a dificuldade (prazerosa) da artesania poética versus a necessidade de expressão do sujeito; é a representação para a suspensão do juízo ("o mal é bom e o bem cruel"). A canção é a luva que a tigresa de unhas negras (e tão afiadas) esqueceu de por. A arte como solução: "ela me conta com certeza que tudo vai mudar".
Os cortes e fraturas temporais e emocionais na narrativa da canção funcionam como desvios que intensificam a verdade (ficcional): até que ponto o cancionista domina a (fera) canção? O ouvinte (auditeur) fica tão envolvido (seduzido) pela imagem pintada da tigresa que deixa de perceber a luta (erótica) entre o cancionista e o ato de compor.
A tigresa canta a vida para o sujeito. Assim como a canção canta o cancionista. Na frente do espelho, o passado de ambos se apresentam e se cruzam. As aparentes contradições (ter muito ódio no coração e dar muito amor) se esfregam, marcam a pele (e o coração) do sujeito: o cancionista é afetado pela canção. E vice-versa.
Assim, a canção é a invenção do lugar onde a gente e a natureza feliz vivem sempre em comunhão: aqui, a tigresa pode mais do que o leão. Cantar é ser invadido por este lugar.
O cancionista, arrebatado pela criatura que lhe surge, durante o exercício artístico e intelectual, não encontra mais palavras (na tentativa de chegar ao real indizível) e corre para o violão, num lamento (refúgio de si). Talvez um som consiga significar esta mulher que surge. A manhã nasce azul: a composição está terminada. A felina (que destroçou o sujeito, ao sair dele e ser, também, ele) pode viver: é o canto do sujeito que lhe dá vida, ou seria o contrário?

***

Tigresa
(Caetano Veloso)

Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom e o bem cruel

Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu
Ela me conta com certeza tudo o que viveu
Que gostava de política em mil novecentos e sessenta e seis
E hoje dança no frenetic Dancin’ Days
Ela me conta que era atriz e trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor

Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis inventando um lugar
Onde a gente e a natureza feliz
Vivam sempre em comunhão
E a tigresa possa mais do que o leão

As garras da felina me marcaram o coração
Mas as besteiras de menina que ela disse, não
E eu corri pro violão, num lamento, e a manhã nasceu azul
Como é bom poder tocar um instrumento

24 julho 2010

205. Se...

Ah, se a vida fosse diferente; se todos os sonhos virassem realidade; se as relações interpessoais fossem perfeitas (mesmo que nem saibamos o que seja perfeição); se a pessoa amada voltasse em três minutos (depois de uma briga); se tivéssemos escolhido caminhos diferentes; se aquela canção tocasse na hora certa... Mas não é assim. Talvez, por isso, precisamos tanto da ficção: da vida mais real.
O "se", de certa forma, é aquilo que, não tendo sido consumido (e consumado), impulsiona o indivíduo para frente. Ou seja, podemos tomar o "se" como um estímulo para continuar na busca da realização do desejo.
Porém, o "se" pode também servir de entrave, caso o indivíduo pare: remoendo aquilo que não foi (chafurdando em sobras de sonhos) sem perceber as possibilidades do que pode ser e está sendo. O "se" pode ser, portanto, um olhar para frente ou para trás, ou mais.
O "Se" criado por Djavan (Coisa de acender, 1992) canta uma relação amorosa que pode ser feliz, mas, como toda relação depende de (no mínimo) dois, o sujeito fica esperando (questionando) uma posição do outro.
Amar, por mais batida que esta expressa possa ser, é correr riscos. Nunca sabemos, ao certo, o quanto o outro gosta de nós. Assim como não sabemos precisar o nosso gostar pelo outro. O sujeito de "Se" caminha sobre a navalha: aquele risco que acende a coisa toda do afeto.
Entre o sim e o não, o outro, da canção, prefere o talvez (o se): perturbando o juízo do sujeito, que, com a ajuda do santo guerreiro, conclui: "quer saber? quando é assim, deixa vir do coração". O negócio é se entregar e ver no que dá: se dá ou não.
De noite na cama, enquanto o sujeito queima de desejo, o outro quer dormir. As imagens (metáforas) que Djavan lança na letra, unidas à melodia malemolente, estabelecem o clima de desejo, convite e dificuldade: o embate erótico noturno.
O convite, claro, é para que o outro, assim como o sujeito, "solte a louca e arda de paixão": façamos, vamos amar - me deixa gozar e goze junto. Largue a mão do não; desça do muro: diga sim a nós.

***

Se...

(Djavan)

Você disse que não sabe se não
Mas também não tem certeza que sim
Quer saber?
Quando é assim
Deixa vir do coração
Você sabe que eu só penso em você
Você diz só que vive pensando em mim
Pode ser
Se é assim
Você tem que largar a mão do não
Soltar essa louca, arder de paixão
Não há como doer pra decidir
Só dizer sim ou não
Mas você adora um se

Eu levo a sério mas você disfarça
Você me diz à beça e eu nessa de horror
E me remete ao frio que vem lá do sul
Insiste em zero a zero e eu quero um a um
Sei lá o que te dá, não quer meu calor
São Jorge por favor me empresta o dragão
Mais fácil aprender japonês em braile
Do que você decidir se dá ou não

23 julho 2010

204. Minha flor, meu bebê

"Minha flor, meu bebê", de Cazuza e Dé, é um mimo. O sujeito da canção parece tomar o outro nos braços e acalentá-lo. Literalmente, tendo em vista as referências às noites de sono em que vela o outro.
Do disco Ideologia (1988), "Minha flor, meu bebê" trata, de modo todo terno (mas consciente de que a dor no fundo esconde uma pontinha de prazer), do sujeito que canta a vida para o outro. Ao "conversar" com o outro, o sujeito manda uma mensagem aos amigos (e aos ouvintes): estou amando e isso significa entrega total ("me fingir de burro, pra você [o outro] se sobressair").
Claro, poeta (sereia que canta a vida do (e para o) outro), o sujeito é um fingidor no melhor uso do termo, como propôs Fernando Pessoa, no poema "Autopsicografia": "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente".
Sim, o sujeito de "Minha flor, meu bebê" sente dor, com sua pontinha de prazer: prazer advindo do júbilo de perceber o outro feliz devido ao canto. Ele se entrega por completo e pede muito pouco em troca: a alegria de ver o outro bem. Ou seja, ele ama. Ele guarda (cuida) o outro (afinal flor e bebê precisam de cuidados delicados e especiais) iluminando a ambos, pois um existe no outro. E se reconhece como egoísta por isso.
Ao cantar o outro, o sujeito, como nos versos de Pessoa, sente a dor cantada (do outro) como se fosse dele (do sujeito). Eis o mistério da poeta: levar quem o ouve a sentir (o que é ouvido) a terrível e prazerosa sensação de que sujeito o objeto são um: a ficção é vida (real).
O sujeito de "Minha flor, meu bebê" entretém a razão (ele sabe que é um fingidor) valorizando (iluminando) a vida do outro. Ele não é louco coisa nenhuma; ele nega a ligação amor e loucura (desrazão) ao deixar perceber o pensamento de si sobre as ações.
O sujeito está onde o amor está: velando pelo outro. Assim, sujeito e destinatário estão cá dentro deles mesmos. E se a voz da noite (parceira dos amantes) silenciar, existirá a voz do sujeito nascendo, rompendo, rasgando, tomando seus corpos e embalando, infinitamente, um no outro, e o contrário disso.

***
Minha flor, meu bebê
(Cazuza / Dé)

Dizem que tô louco
Por te querer assim
Por pedir tão pouco
E me dar por feliz
Em perder noites de sono
Só pra te ver dormir
E me fingir de burro
Pra você sobressair

Dizem que tô louco
Que você manda em mim
Mas não me convencem, não
Que seja tão ruim
Que prazer mais egoísta
O de cuidar de um outro ser
Mesmo se dando mais
Do que se tem pra receber
E é por isso que eu te chamo
Minha flor, meu bebê

Dizem que tô louco
E falam pro meu bem
Os meus amigos todos
Será que eles não entendem
Que quem ama nesta vida
Às vezes ama sem querer
Que a dor no fundo esconde
Uma pontinha de prazer
E é por isso que eu te chamo
Minha flor, meu bebê

22 julho 2010

203. Poema

"Poema", de Cazuza e Frejat, é uma daquelas canções comoventes que fisgam o ouvinte agindo direto no escaninho da memória. Repleta de versos que remetem o ouvinte ao passado (lugar/espaço/tempo seguro), "Poema" flui com um sujeito querendo, a princípio, recolher-se ao ventre (bolha e paraíso), mas percebe que o passado lhe fez.
Ney Matogrosso (Olhos de farol, 1999), como a voz posta no ponto exato da saudade, ilumina a mensagem da letra e engrandece o poder encantador da canção. Ora com vigor, ora com passionalidade, Ney estabelece um pacto de aceitação e cumplicidade com quem ouve sua voz.
Mas quero pensar, primeiro, no título da canção. Ela nos leva à (quase) caduca querela entre poesia e letra de canção. Ou seja, letra de canção é poesia?
Não. Não é e nem deve querer ser. Dizer que letra é poesia, reduz o valor (e o poder) das duas instâncias artísticas. Cada qual tem as suas especificidades de feitura e de recepção (consumo). Não podemos ignorar a performance vocal e o acompanhamento instrumental, por exemplo, ao tratarmos de canção. Tão pouco podemos desprezar "a linguagem carregada de significado" e os desvios na língua que constituem a poesia.
Porém, sem me contradizer, respondo também que sim. Letra é poesia na medida em que trabalha com o signo verbal, a palavra, objeto (também) da poesia (literatura). Além disso, se pensarmos a poesia como um canto afirmativo da existência, noutra perspectiva, poesia é canção, e vice-versa.
Ou seja, uma coisa atravessa a outra. Hoje, diante da imposição (relação de poder) da escrita, por exemplo, lemos muitos textos que a princípio eram canções (para ser cantados), mas, como as partes melódicas (a notação musical é bem tardia, como sabemos) não chegaram até nossos dias, sem nenhum grilo, lemos canção como se fosse poesia. Desde os textos de Homero até os provençais estão aí para provar isso.
Seja como for, a discussão é complexa, complicada e acirrada. Requer e merece inúmeros torneios teóricos e filosóficos que o espaço não permite. Para o momento, importa pensar a canção e a poesia como interfaces da pulsão de vida: vida como criação (sempre) ficcional: vida mais real.
Voltando à canção "Poema", temos um sujeito que, diante de um pesadelo, depara-se com o medo
das exigências da vida louca vida. Aparentemente um adulto, ele percebe (passa em revista) os momentos bons (o aconchego no colo) que ficaram para trás.
O tempo infantil ficou guardado na memória do sujeito e agora, pelo medo, volta com a força precisa para consolá-lo. Naquele tempo, "o medo era desculpa pra um abraço ou consolo". Hoje, sozinho no mundo, o sujeito se vale do calor que tal lembrança proporciona.
Obviamente, em geral, quando olhamos o passado (que é a única certeza que se tem), a impressão é a de que "éramos felizes e não sabíamos". Tal ideia, em choque com os medos e apelos do presente (e a incerteza do futuro, que não existe), parece fazer sentido. Ao menos consola: plasma pensamentos de coragem e ânimo no devir.
Alguma coisa (indescritível: poema/canção) sempre fica, apesar de perdermos muitas coisas pelo caminho. Esta coisa, que não tem fim, pois nos constitui enquanto sujeitos, cantam nossas vidas, para nós, sustentam-nos no ar eliminando (ao condensar) presente, passado e futuro. Afinal, o caminho pode ser escuro e frio, mas também iluminado pelo que passou (há minutos atrás).

***

Poema
(Cazuza / Frejat)

Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era ainda criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás

21 julho 2010

202. Eu te devoro

Lançada no disco Bicho Solto (1998), a canção "Eu te devoro", de Djavan, apresenta um sujeito que lista os motivos (os impulsos) que o levam a devorar o receptor. Noutro plano, há nesta canção a devoração de vários matizes sonoros: gesto típico na obra de Djavan.
Tal gesto leva-o, por vezes, a quase perder o objeto que canta, devido à profusão de imagens e sons justapostos (metáforas e metonímias muitas vezes com conexões distantes). O resultado é, no mais das vezes, uma peça (neo)barroca, ou rococó mesmo: o ouvinte "se perde" (no turbilhão complexo de sons e textos) e não consegue identificar o objeto sobre o qual a canção se desenvolve.
O fato é que Djavan não deixa nenhuma informação sonora brasileira (quiçá, universal) passar despercebida: ele devora tudo, arrumando tudo (com seu vigor criativo) e constrói um som seu, autoral.
Há uma sensualidade, toda tropical (um banho tépido), que sempre mina e ilumina as canções de Djavan. Em "Eu te devoro", por exemplo, o sujeito cobre o receptor "de um luxo radioso de sensações": desenha cada detalhe da constituição do outro que instiga no sujeito o desejo de devoração: ter para si as lindezas do outro. Em um ato todo primário, selvagem e humano.
O clima de entrega (mormaço do desejo) é estabelecido logo no início da letra: os sinais e o olhar do outro confundem, mas, mesmo assim, e talvez por isso mesmo, o sujeito devora. É o enigma do outro (pelo outro ser diferente do sujeito) que leva o sujeito à devoração do seu bem bem-querer. Esperar e esperar devorar o outro (cercar o outro de significantes inebriadores) mantém o sujeito vivo.
O olho (janela da alma, para alguns) é a porta da frente do outro, por onde o sujeito, confuso, invade (e é invadido) pelo outro. O sujeito é todo (da cabeça aos pés) o outro. Os versos do texto (com imagens do tempo que transcorre e do olhar do sujeito sobre o corpo do outro) vão adensando o desejo e a invasão do sujeito na subjetividade do outro, devorando-o.
O ápice da cantada é quando o sujeito compara a criação divina do universo à feitura do outro: objeto de desejo e milagre da existência do sujeito. Aliás, gesto comum em momentos de cantadas (elogios), o sujeito se apaga para iluminar o outro: "Deus, sem pensar em nada, fez a minha vida e te deu".
Ora, se Deus deu a vida do sujeito a um ser que, como este canta, é tudo, então Deus não foi tão cruel assim. Pelo contrário. E isso é usado como método persuasivo para encantar.
Nos versos "noutro plano te devoraria tal Caetano a Leonardo di Caprio", o sujeito marca que a relação cantada em "Eu te devoro" é hetero, mas poderia, noutro plano, ser homoerótica, caso ele fosse outro (Caetano) e ela fosse outro (Leonardo). Pouco importa, o importante é marcar o desejo de devoração pelo milagre da beleza que se avista.
A vida só é possível pelo olhar (enigmático) do outro. É a devoração deste olhar que sustenta (canta) o sujeito. Mesmo que isso signifique uma espera (eterna), o sujeito vive para devorar (e ser devorado). Afinal, só assim eles existem de fato: no canto.

***

Eu te devoro
(Djavan)

Teus sinais
Me confundem da cabeça aos pés
Mas por dentro eu te devoro
Teu olhar
Não me diz exato quem tu és
Mesmo assim eu te devoro
Te devoraria a qualquer preço
Porque te ignoro ou te conheço
Quando chove ou quando faz frio
Noutro plano
Te devoraria tal Caetano
A Leonardo di Caprio
É um milagre
Tudo o que Deus criou
Pensando em você
Fez a via-láctea
Fez os dinossauros
Sem pensar em nada
Fez a minha vida
E te deu
Sem contar os dias
Que me faz morrer sem saber de ti
Jogado à solidão
Mas se quer saber
Se eu quero outra vida,
Não, não.

Eu quero mesmo é viver
Pra esperar, esperar
Devorar você

20 julho 2010

201. Como nossos pais

"Os livros não são sinceros" e "é mais inteligente o livro ou a sabedoria?" são versos (de Carlinhos Brown e Marisa Monte, respectivamente) que evoluem dentro da perspectiva que questiona o poder grafocêntrico (da escrita) para a conservação e transmissão de conhecimento.
Ou seja, o que a vida (empírica/real) ensina seria mais radicalmente promotor de modificações (para melhor viver) no sujeito, do que aquilo que se aprende com os livros: a atividade empírica versus a atividade intelectual.
Seja como for, a dicotomia livro/sabedoria (com a valorização do saber simples, comum e desautomatizado), como se um imprescindisse o outro, de fato, merece um olhar mais verticalizado.
Por hora, importa pensar o sujeito de "Como nossos pais", de Belchior, como alguém que reitera a relação simpliscidade/sabedoria/verdade, ao negar a fala sobre o que aprendeu nos discos e valorizar o que viveu e aconteceu com ele (o sujeito). Ele fecha o livro (tapa os ouvidos) e vai para rua viver.
Ele recusa a ficção e investe na verdade (na vida). Começa com uma negação - não aos discos e sim aos fatos empíricos - para afirmar seu canto. Afinal, para ele, a voz foi feita para abraçar e beijar. Há um desejo explícito de roçar a vida pela corporeidade/fisicalidade: a ferida viva é mais sincera.
A voz de Elis Regina (na antológica gravação para o disco Falso brilhante, 1976) entra antes do acompanhamento melódico. Quase no susto, o sujeito arrebata o ouvinte apontando que será a fala o foco da mensagem a ser transmitida.
A simpliscidade (iconizada pela viola que acompanhará a voz de Elis), representante do sertão (do interior, portanto), de onde o sujeito parece ter vindo, questiona a erudição (a cidade). A viola (algo) caipira do início dá espaço à guitarra: mas as duas precisam viver juntas.
O sujeito vai ficar na cidade, mas deseja manter traços trazidos do outro lugar. Migrante, ele fica porque sente (vindo no vento) a chegada de boas novas: o novo sempre vem, embora o passado (sempre presente) impeça (ou tente impedir) o futuro. A acomodação naquilo que já se tem como certo é melhor do que as incertezas da novidade.
O livro e o disco (tentativas de registros dos acontecimentos e de organização do pensamento) não dão conta de mostrar a verdade do sujeito. Daí a negação inicial. Ao cantar (e registrar isso, através da escuta do outro) ele reúne significantes que se perderiam com o tempo. Ele se encanta (se apaixona) por uma nova invenção: contar como viveu e o que aconteceu consigo.
Ficção (sonho) e real (viver) se justapõem. Com o canto sendo menor do que a vida de qualquer pessoa, e o sujeito querendo contar a sua vida, ele cria um megacanto, com poucas repetições, sem dar conta da vida (ferida viva). Ele finda por aceitar o seu "engajamento fracassado".
Ele se dá conta de que "somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Os gestos de ruptura fracassam. Mas no canto a voz é o abraço que acolhe e protege, pois eterniza os irmãos. O real é incapturável. Os livros e os discos pinçam fragmentos: registram o que, se ficasse apenas no vocal, seria perdido.

***

Como nossos pais
(Belchior)

Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos

Quero lhe contar
Como eu vivi
E tudo o que
Aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa

Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens

Para abraçar meu irmão
E beijar minha menina
Na rua
É que se fez o meu lábio
O seu braço
E a minha voz

Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantado
Como uma nova invenção
Vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pr'o sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
E eu sinto tudo
Na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo
E eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Esta lembrança
É o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
As aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu estou por fora
Ou então
Que eu estou enganando

Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem

E hoje eu sei
Eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Está em casa
Guardado por Deus
Contando seus metais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

19 julho 2010

200. Mundo inteiro

Com sensíveis referências trazidas da audição do pessoal do Clube da Esquina, mas também Bob Dylan e Joni Mitchell, entre outros, Roberta Campos está fazendo um som orgânico e positivo. O disco Varrendo a lua (2010) festeja as sutilezas (detalhes) da vida cotidiana: investe na simplescidade para desenhar sons que apaziguem a pressa do dia-a-dia.
Com dicção clara (todas as palavras soam muito bem pronunciadas e perfeitamente audíveis), Roberta Campos desbrava sonoridades que, se já estão no cânone da canção popular, em seu disco vibram em harmonia e vontade de paz: Roberta investe no lado da vida que flutua, em detrimento do lado que pesa.
Ela "limpa" seu som para apontar que os gestos comuns (e muitas vezes renegados pela profusão de imagens e sentidos do mundo contemporâneo) são os que de fato transformam a vida. As pequenas atitudes, exercitadas por cada um, abrem luminosos caminhos para o coletivo.
O bacana é que é difícil definir o estilo de Roberta Campos, tendo em vista a mistura sonora bem construída que ela entrega de presente ao ouvinte. Podemos perceber desde Rufus Wainwright a Beatles, sem grilos e numa paz. Um pé na soleira e um pé na estrada.
Varrendo a solidão do ouvinte para longe, "Mundo inteiro", da própria Roberta Campos, um folk-reggae, é uma declaração do amor mais que perfeito, de tão grande e intenso: daquele amor que espera o tempo que for para se consumar.
A canção "Mundo inteiro" é o canto do sujeito que se vislumbra completo (inteiro) através do olhar do outro. O tempo, assim, perderia o sentido ordinário que tem agora: os dias chegariam com mais paixão.
Os verbos no tempo presente (além de gerúndios afirmativos do agora: do tempo líquido que escoa) contrastam com o refrão - eu vou. Tal contraste acentua que ao amar (e cantar este amor) o sujeito tem a eternidade (aqui) com ele: na voz. O canto aproxima as personagens que se precisam enormemente: o mundo inteiro. O sujeito quer o outro, e tem.

***

Mundo inteiro
(Roberta Campos)

Quero ver você com esses olhos
Olhando para mim olhar inteiro
Falo bem baixinho e completo
Passando a mão no teu cabelo
Esqueço que a hora passa e invento
Um modo de ficar por muito tempo
Seguro tua mão e me contento
Fazendo isso durar por toda vida

Eu vou, eu vou, eu vou
Ficar com você amor

Quero ver você com esses olhos
Olhando para mim olhar inteiro
Falo bem baixinho e completo
Passando a mão no teu cabelo

Esqueço que a hora passa e invento
Um modo de ficar por muito tempo
Seguro tua mão e me contento
Fazendo isso durar por toda vida

Eu vou, eu vou, eu vou
Ficar com você amor

Se me disser que amanhã é tarde
Te falo mil razões que me invadem
Preciso de você o mundo inteiro
Agora que já sabe dá um jeito

Eu vou esperar você amor
Pode ser o tempo que for
Eu tenho a eternidade aqui comigo

18 julho 2010

199. Manhã de carnaval

"Manhã de carnaval", de Luiz Bonfá e Antonio Maria, fez parte da trilha sonora do filme Orfeu do carnaval (adaptação da peça Orfeu da Conceição). Virou um clássico, com várias interpretações, nacionais e internacionais (estas, principalmente, com o título "A day in the life of a fool").
Orfeu é portador do dom poético e musical. Cantor por excelência, "apascentava as feras, controlava os ventos, acalmava os coléricos", como aponta a professora Carlinda Fragale Pate Nuñez. Mas, sem Eurídice (a mulher mais adorada), Orfeu é nada.
Com a morte de Eurídice, Orfeu (o peito extravasado) perde a vontade (o ânimo) de cantar. Porém, "sob os acordes de sua lira (...) os Senhores das Trevas se sentem comovidos e permitem o retorno de Eurídice". Orfeu é, portanto, aquele que realizou a funesta viagem: a catábase, ou seja, a ida (corporal) aos infernos.
Ele vai buscar sua amada Eurídice, com a condição de jamais olhar para trás até estarem de volta ao mundo dos vivos. Ele acha Eurídice, mas, para ter certeza de que é a amada que lhe segue, ele olha para trás e a perde para sempre. Perdendo também a si mesmo.
O olhar retroverso de Orfeu, o desejo de verdade (de ter certeza), lhe custa a vida, visto que sem Eurídice a existência guardará novos (tristes) sentidos: a solidão; a falta do objeto e do sujeito cantante e cantado que dava sentido à existência. Um silêncio ensurdecedor se alastra em seu ser.
Orfeu volta transformado: "a existência sem ti é como olhar para um relógio só com o ponteiro dos minutos". O desejo de verdade lhe roubou o bem mais precioso: sua razão de existir. Ele passará o resto da existência cantado a falta de Eurídice, à espera pelo dia "em que (ela) virás": "O meu viver é de esperar pra te dizer adeus".
Eurídice passa a existir (como, de fato, sempre existiu) nas cordas do violão de Orfeu. São os acordes que dão vida a Eurídice: sustentam-na viva na vida solitária de Orfeu. Orfeu e Eurídice vivem (e se eternizam) na palavra cantada: na repetição do mito.
"Manhã de carnaval" está cheia de sugestões ao mito: a imagem do "poeta por excelência, errante, solitário, insulado na sua arte e, despossuído de Eurídice, devolvido à sua orfandade", como descreve a professora Carlinda, é a mais significativa.
A canção tem a introdução inspirada no tema do terceiro movimento da "Humoresque em Si Bemol, opus 20", de Robert Schumann. A interpretação de Carlos Galhardo (o grande intérprete de valsas), de 1959, cria o clima de um cordão de carnaval (marcha rancho): um bloco da saudade, acompanhado por uma bandinha festiva, mas melancólica (lenta e compassada). O que figurativiza a vontade de "estar junto": olhar a beleza.
Ao acelerar o ritmo (da melodia e do canto) nos versos "canta o meu coração alegria voltou tão feliz a manhã deste amor", o sujeito tematiza a pletora de alegria e o consequente descompasso do coração diante da possibilidade da conjunção amorosa. Eis o lampejo de alegria que uma manhã de carnaval (repleta de esplendor) pode ofertar ao coração do folião errante e vazio do canto da amada.

***

Manhã de carnaval
(Luiz Bonfá / Antonio Maria)

Manhã, tão bonita manhã
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
teu riso, tuas mãos
pois há de haver um dia
em que virás

Das cordas do meu violão
que só teu amor procurou
vem uma voz
falar dos beijos perdidos
nos lábios teus

Canta o meu coração
alegria voltou
tão feliz a manhã
deste amor

17 julho 2010

198. Casa pré-fabricada

Para Jaciara Campos

"Casa pré-fabricada", de Marcelo Camelo, é uma das mais belas metacanções que tocam no rádio. Toda lírica e toda coletiva (pois diz muito de nós: humanos), ela mergulha para dentro e salta para fora de si com a mesma força de imagens e significações.
A versão de Maria Rita (Segundo, 2005) empresta paixão, melancolia e flashs de luz corretos à mensagem da letra. A introdução toda terna (com sons de uma vassourinha se arrastando pelo chão da casa) indicia o canto cheio de alongamentos vocálicos exatos.
"Casa pré-fabricada" tenciona, sintetiza e ilumina aquele sujeito que só entra (existe) na vida do outro (receptor da mensagem) pela porta do canto: "Canta que é no canto que eu vou chegar", diz. O canto é a casa pré-fabricada onde o sujeito pode se abrigar e ser (humano).
Desde a primeira palavra - "abre" - até o derradeiro verso - "tristeza nunca mais" - o que ouvimos é o desnudamento do sujeito. Ele afirma e confirma que sua existência só dura enquanto o outro está a cantá-lo. Como audideur (deslizamento semântico do termo voyeur para as questões vocais e de escuta) invadimos a intimidade mais íntima do sujeito, aquilo que lhe constitui enquanto tal: o canto.
Distante da culpa limitadora (imputada por algumas religiões, principalmente, cristãs), a voz que canta em "Casa pré-fabricada" pede ao outro que cante, pois é no canto ("qualquer coisa assim sobre você") que ele entende a paz de estar abrigado na voz do outro. "É só ter alma de ouvir e coração de escutar", como canta o sujeito de "Sou seu sabiá", de Caetano Veloso.
O verso "canta o teu encanto que é pra me encantar" guarda o segredo da canção, e do sujeito. O desejo é que, arrebatados pelo sol de primavera, e com o consolo que o canto do outro traz, a voz do sujeito se una a voz do outro: "pra fazer da nossa voz uma só nota". A relação dual necessária a existência de ambos.
A intenção, portanto, se reverte (a canção se come) e o sujeito reconhece que ele também deve cantar para, encantando o outro, o outro cante junto e a reciprocidade (a justaposição de vozes) possa sustentar a existência dos dois: agora um. Assim, um no canto do outro, tristeza nunca mais.
Tudo parece durar apenas uma noite (do deitar do sol até de manhã): o tempo das delícias do encontro erótico-afetivo. O tempo da (re)conciliação dos corpos. O tempo da sobreposição do canto que vai de um ao outro (e vice-versa): uníssono com a vida.

***

Casa pré-fabricada
(Marcelo Camelo)

Abre os teus armários
Eu estou a te esperar
para ver deitar o sol
sob os teus braços castos
Cobre a culpa vã
até amanhã eu vou ficar
e fazer do teu sorriso um abrigo

Canta que é no canto que eu vou chegar
Canta o teu encanto que é pra me encantar
Canta para mim qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz
Tristeza nunca mais

Vale o meu pranto
que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela
primavera quer entrar
pra fazer da nossa voz uma só nota

Canto que é de canto que eu vou chegar
Canto e toco um canto que é pra te encantar
Canto para mim qualquer coisa assim sobre você
que explique a minha paz
Tristeza nunca mais

16 julho 2010

197. Já sei namorar

No final de 2002 um antimovimento agitou a canção brasileira. O tribalismo de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte chegou no pilar da construção da canção, mostrando (literalmente, pois há um vídeo, que se sugere caseiro) o processo de feitura das canções.
O projeto Tribalistas, portanto, brinca com a pulsão voyeur do ouvinte de canção popular: indicia e responde ao crescente interesse pelos bastidores da arte. Aliás, os versos "não tenho paciência pra televisão, eu não sou audiência para a solidão" não deixam de ser (auto)irônicos já que o projeto foi lançado em canal aberto de TV, em horário bastante tarde da noite. Ou seja, embalou a solidão de muito telespectador (ouvinte, voyeur, fã, insone).
"Já sei namorar" é o canto do sujeito posto no mundo: cheio de si (de autoafirmações) e de certezas daquilo que quer: ser feliz. Se quando a gente está contente nem pensa que está contente, e nem pensar a gente quer, o sujeito de "Já sei namorar" afirma isso ao cantar/dizer que não tem juiz. Sem pecado e sem juízo ele quer aproveitar a existência.
A canção começa com a afirmação-título a fim de não deixar dúvidas: o sujeito já sabe namorar e está disposto a curtir todo o mundo. Ele fixa sua atenção do presente (os verbos estão no presente) nas possibilidades que a vida lhe oferece: Menino menina não venha grudar não, avisa. O desapego é a regra. Nada do stress das relações românticas, com suas pressões e cobranças. O amor, para o sujeito, "é amor pletora".
Adolescente (com todas as implicações do termo), o sujeito quer o outro ao seu modo: como ninguém, como Deus quiser, como se quer: livre. Ele, ao final, não se difere dos outros (que desejam um desejo), apenas tem a coragem (eis o pulo do gato na cama elástica das relações) de afirmar o desejo. A atitude POP de incorporar tudo. Mas aponta, de viés, a fragilidade das relações, que se desintegram no próximo momento.
Como não poderia deixar de ser, "Já sei namorar" foi o sucesso estrondoso do carnaval seguinte. Tempo da inversão dos costumes morais, o carnaval facilita (permite) o extravasamento dos desejos comumente reprimidos (recalcados) pela imposição social.
A canção virou hino da liberdade das vontades, que tem o carnaval como símbolo. Mas, como todo carnaval tem seu fim, o sujeito de "Já sei namorar" sente que algo está minando: resta-lhe sonhar.

***

Já sei namorar
(Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Marisa Monte)

Já sei namorar
Já sei beijar de língua
Agora, só me resta sonhar
Já sei onde ir
já sei onde ficar
Agora, só me falta sair

Não tenho paciência pra televisão
Eu não sou audiência para a solidão

Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo me quer bem
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo é meu também

Já sei namorar
Já sei chutar a bola
Agora, só me falta ganhar
Não tenho juiz
Se você quer a vida em jogo
Eu quero é ser feliz

Não tenho paciência pra televisão
Eu não sou audiência para a solidão

Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo me quer bem
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo é meu também

Tô te querendo como ninguém
Tô te querendo como Deus quiser
Tô te querendo como eu te quero
Tô te querendo como se quer

15 julho 2010

196. A canção tocou na hora errada

Para Paulo Vítor

"A canção tocou na hora errada" (Ana Carolina, 1999) traduz o trauma do sujeito que, tendo composto uma canção para alguém, perdeu o time exato: enquanto o rádio tocava, veio o temporal e o outro não ouviu a canção.
O sujeito se vale te ter guardado as cartas (em letras de forma: aquelas que dificultam o exame de reconhecimento grafológico) do outro. Possivelmente cartas inspiradoras da canção. Não sabemos, pois tudo aqui é sugestão.
Em "A canção tocou na hora errada", Ana Carolina suaviza seu poderoso timbre e dá voz ao sujeito ensimesmado, remoendo a falta de sorte. Sabendo da dificuldade que é ter uma canção tocada no rádio, ainda mais se for um cancionista iniciante, o ouvinte se solidariza com o sujeito. A empatia vem da certeza dos descaminhos dos sentimentos: querer demonstrar o amor e o universo conspirar contra.
Tudo pode ser ouvido também como metáforas sobre a relação afetiva: quando o sujeito estava pronto para amar, veio a "tempestade" e levou o outro embora; quando o sujeito ia cantar o outro, e assim arrebatar o outro para si, a "tempestade" impediu.
Sem o canto do outro não existimos: o outro, inspiração do sujeito, se pulveriza na imaginação, perde o vigor e morre. Quantas vezes as relações perdem o tempo exato (e eterno enquanto dure) de existir?
Agora, enquanto o trauma do sujeito é cantado, a canção se faz ouvir. Mas, por causa do temporal o outro não escuta: "Mas não tem nada não eu até lembrei das rosas que dão no inverno".

***

A canção tocou na hora errada
(Ana Carolina)

A canção tocou na hora errada,
e eu que pensei que sabia tudo
Mas se é você eu não sei nada,
quando ouvi a canção, era madrugada
Eu vi você, até senti tua mão
e achei até que me caia bem como uma luva
Mas veio a chuva e ficou tudo tão desigual

A canção tocou no rádio agora, mas você não
pode ouvir por causa do temporal,
Mas guardei tuas cartas com letras de fôrma
Mas já não sei de que forma mesmo você foi embora

A canção tocou na hora errada, mas não tem nada não,
eu até lembrei das rosas que dão no inverno
Mas guardei tuas cartas com letras de fôrma
Mas já não sei de que forma mesmo você foi embora

14 julho 2010

195. Meu mundo e nada mais

A importância que as trilhas sonoras de telenovelas desempenham para a história de nossa canção é grande. Além de tornar a trama, ora mais leve, ora mais pesada, dependendo dos apelos das cenas, as canções marcam as personagens e estimulam emoções no ouvinte-telespectador. Elas, como que, complementam a personagem. Sem esquecer, claro, o alcance de público.
Como somos seres carentes (circular e infinitamente) do canto do outro, ao assistirmos alguém (a personagem de ficção) vivenciando algo que encontra eco nas nossas necessidades íntimas e particulares, e aquele momento é emoldurado por uma canção, esta canção entra, pelas portas da empatia e da afetividade, na nossa constituição de sujeitos.
É assim que muitas vezes as canções ultrapassam os limites da TV e figuram nas vidas reais embalando momentos particulares de quem assiste à novela. Seja como for, ao colarmos uma canção a um tempo e a uma imagem (no caso uma cena de novela, algo que atravessa nosso cotidiano por um bom par de tempo) facilitamos que ela (a canção) dure mais: ressoe em nossa caixa acústica interior. Isso, não só ajuda a difundir a canção como também a torná-la perpétua (em nós: ouvintes).
"Meu mundo e nada mais", de Guilherme Arantes (Guilherme Arantes, 1976), é um destes casos. A canção apareceu na novela Anjo mau e nunca mais parou de tocar: seja pelo poder de fixação da imagem televisiva, seja pela própria canção em si: sua mensagem (letra e melodia).
Competente pianista, Guilherme criou um acompanhamento melódico e harmônico que investe nas potências daquilo que a letra diz. A bela introdução indicia a voz de um sujeito que, chafurdando em restos de vida, canta a paz perdida.
Ao sustentar as vogais, no final de alguns versos, o sujeito parece querer manter (rever) a vida que perdeu. Fera ferida, o que lhe importa agora é juntar os caquinhos de um velho mundo a fim de projetar um novo.
O sujeito percebe, com dor, que não há "verdades verdadeiras". Tudo muda o tempo todo e a vida, neste momento, exige mudanças. A certeza dá paz. Mas, o mundo é feito de incertezas, ou melhor, de ficções: verdades construídas, montadas e frágeis. O sujeito percebe isso e tenta (de)escrever o seu livro do desassossego.
Desencantado da vida (ele que tinha tudo e cantava), o sujeito está mudo: não há mais porque cantar, se as motivações cessaram. A reflexão interna do sujeito transparece como um desabafo íntimo: a vontade de esquecer a causa do desencanto. Mas, como ver luz no fim do túnel se estamos na curva; na crise; na fronteira entre o sim e o não? Como voltar a sorrir sem amargura depois da ferida? Como superar a quebra permanente das estabilidades? Eis as questões.

***

Meu mundo e nada mais
(Guilherme Arantes)

Quando eu fui ferido, vi tudo mudar
das verdades que eu sabia
só sobraram restos, e eu não esqueci
toda aquela paz que eu tinha

Eu que tinha tudo, hoje estou mudo
estou mudado
À meia-noite, à meia-luz pensando
Daria tudo por um modo de esquecer

Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto,
à meia-noite, à meia-luz sonhando,
Daria tudo por meu mundo e nada mais

Não estou bem certo
se ainda vou sorrir
sem um travo de amargura
Como ser mais livre,
como ser capaz
de enxergar um novo dia

13 julho 2010

194. Folhas secas

Em "Folhas secas" (Todas as coisas e eu, 2003) Gal Costa empresta sua voz à memória afetiva de um sujeito que, visionário, pensa no momento em que o tempo (tambor de todos os ritmos) avisará que o sujeito não pode mais cantar.
A canção de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, de viés, resgata nossa tradição sonora, pois presta digna homenagem àqueles cancionistas que saem de cena: seja pela imposição mercadológica, seja pela força do tempo (compositor de destinos).
A imagem desenhada na letra - de alguém (o eu da canção) pisando em folhas secas, caídas de uma mangueira, que lhe remete ao fulgor da sua Estação Primeira - apresenta o tempo (tão inventivo) que corre: o sujeito está no outono (folhas caindo); pensando na primavera (mocidade e vigor da Estação Primeira) e no verão (sempre o sol lhe queimando); e vislumbrando o inverno (o silêncio de sua voz ao lado do violão companheiro).
A idade (maturidade) do sujeito e a perspectiva do tempo (senhor tão bonito) se misturam para cantar o canto que se movimento para o silêncio.
O arranjo de Eduardo Solto Netto investe na cadência lenta e compassada, diferente do que deve ter sido a vida do sujeito, quando subia o morro e cantava com os poetas da sua escola. A voz de Gal auxilia na construção da imagem do sujeito grávido de saudade, mas que ainda tem voz para cantar.
A repetição melancólica de Gal para o verso "e assim vou me acabando", que indica o fim da canção "Folhas secas", simboliza também o fim do canto do sujeito: o fechamento de um ciclo de vida e, quiçá, a entrada do sujeito na memória afetiva dos ouvintes.
Muito se fala da falta de memória do brasileiro. De fato, basta, sem muito esforço, um olhar retrospectivo para perceber o quanto de importantes e decisivas figuras de nossa história estão esquecidas, mal guardadas nos livros de história. "Folhas secas" aponta isso ao mostrar que o tempo é contínuo: nosso passado é o que somos no presente. Se o presente é incapturável e o futuro é inexistente, como diria o sábio Tom Zé: "Tudo só se acha no passado".

***

Folhas secas
(Nelson Cavaquinho / Guilherme de Brito)

Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha Estação Primeira
Não sei quanta vezes
Subi o morro cantando
Sempre o sol me queimando
E assim vou me acabando

Quando o tempo avisar
que eu não posso mas cantar
sei que vou sentir saudade
ao lado do meu violão
da minha mocidade

12 julho 2010

193. Cósmica

Para Rinah Souto

O que seria dos anos 80 sem Baby Consuelo (do Brasil)? Baseada em que podemos fazer quase tudo, sem pecado e sem juízo, Baby sacudia nossas posturas moralistas e cantava a ética da alegria: nossa força maior.
Barrados (ela e Pepeu) na Disneylândia, para onde foram levados por um motorista gay, em uma limosine prata, afinal seus cabelos coloridos não podiam ofuscar o brilho dos brinquedos do parque, a menina energizada fez festa total na canção brasileira.
Baby personificava a busca holística de superar a caretice catalisando forças antimaterialistas de afirmação da alegria de viver. Suas canções eram portais de percepção de um mundo mais feliz: eterno domingo, com todo mundo pintado de verde, restituindo a glória da retomada do contato com a natureza. Tensões flutuantes desenhavam o projeto estético de Baby: a coloração exata dos chacras.
Suas viagens astrais (sua trip pessoal) arrebanhavam um público carente de liberdade de expressão e afirmação. Suas buscas espirituais (reflexo e refração de prana) injetavam vigor, alegria e consciência crítica nos ouvintes. Voltar de uma viagem com Baby é voltar transformado. Pegue-se qualquer disco dela e isso estará comprovado.
Cósmica (1982) é um ótimo exemplo. A canção que dá título ao disco, de autoria da própria Baby, é uma louvação, um hino de agradecimento aos estágios superiores (de consciência) alcançados.
O sujeito canta a transformação do homem comum, que um dia saca que o seu lado é a paz e o amor. Ele desliza do simples ao complexo; da matéria ao espírito: busca a sabedoria através da percepção dos detalhes da vida.
O outro, com a ajuda do canto (atravessado de guitarras virtuosas e sons intergaláticos) do sujeito, descobre que cósmica é a sintonia espiritual: o religar do indivíduo com toda a natureza. Ser telúrico: livre de (pre)conceitos.

***

Cósmica
(Baby Consuelo)

Era uma vez uma pessoa comum
A fim de saber do bem e do mal
E que um dia sacou
Que o seu lado é o amor
Não aceita a violência
Cultiva, a consciência
E vive nessa magia
Em busca da sabedoria

Cósmica a claridade da manhã
Cósmica como o infinito lá do céu
Cósmica como toda a natureza

Brotou bem lá no fundo
Do seu pequenino mundo
O desejo de saber como é profundo viver

Da matéria ao espírito
Por mais que parece esquisito
Cósmica é a sintonia espiritual
Prazer transcendental

11 julho 2010

192. Porto Alegre

Ulisses, de Homero, para não sucumbir ao encanto das sereias se manteve amarrado ao mastro de sua nau, mas com os ouvidos livres ao canto. Já seus companheiros, enquanto remavam, permaneceram com os ouvidos tapados com cera.
Para alguns, Ulisses se autocondenou à impotência e ao aprisionamento para poder gozar do canto e condenou, simultaneamente, seus companheiros a renunciar ao gozo artístico para continuarem vivos. Para outros, a artimanha de Ulisses não significou apenas um controle racional sobre os encantos mágico-míticos, mas a consagração dele como narrador de suas aventuras.
Seja como for, caso tivesse sucumbido (se atirado aos braços das sereias), Ulisses não poderia cantar seus feitos. O canto é o triunfo: a fama almejada por Ulisses e por todos nós. O "perigo" é nos deixar ser arrastados por este canto.
Em "Porto alegre", Péricles Cavalcanti reinventa o mito: Ulisses, além de estar amarrado no mastro, tapa as orelhas, a fim de resistir ao canto das sereias e aportar (feliz) da ilha de Calipso.
Calipso é outra entidade sedutora da Odisséia, de Homero: ninfa da mitologia grega que retardou a volta de Ulisses à terra natal, por 7 anos. Ao mesmo tempo que se figura como gênero musical.
Há, obviamente, um sofisticado jogo entre Calipso (ninfa) e calipso (ritmo afro-caribenho). O sujeito - Ulisses - canta a alegria de curtir a vida pelos cinco sentidos: "só sei dançar ao ritmo de calipso" (ninfa e dança): o corpo fica, viciosamente, odara.
No disco Maré (2008), segundo disco de uma trilogia que tem o mar como tema (o primeiro foi Maritmo, 1998), Adriana Calcanhotto (ao ritmo de um gostoso calipso), tendo os vocalizes luxuosos de Marisa Monte, fazendo as vezes de sereia, dá voz ao neo-Ulisses: aquele que quer sentir a vida pelo corpo todo. Afinal, um porto alegre é bem mais que um porto seguro.


***

Porto Alegre (Nos braços de Calipso)
Péricles Cavalcanti

amarrado num mastro
tapando as orelhas
eu resisti
ao encanto das sereias
eu não ouvi
o canto das sereias
eu resisti

mas chegando à praia
não fiz nada disso
então caí
nos braços de Calipso
eu sucumbi
ao encanto de Calipso
não resisti

desde então eu não tive
nenhum outro vício
senão dançar
ao ritmo de Calipso
pois eu caí
nas graças de Calipso
não resisti
ao encanto de Calipso
só sei dançar
ao ritmo de Calipso

10 julho 2010

191. Madrasta

Para Teder Sacoman

A figura da madrasta foi perpetuada na literatura infantil, a partir, principalmente, para nós, dos mitemas da história da Cinderela, como a "persona no grata" que surge para assaltar o lugar da mãe e finda por infernizar a vida do enteado.
Exageros e mitos a parte, não faltam piadas e histórias que reforçam a madrasta como uma pessoa má. De fato, tomando a mãe como aquela figura essencial que canta o mundo para o filho, a madrasta atravessa essa relação: ora para o bem, ora para o mal.
O filho, que sofre com a perda (afastamento) da mãe, seja pela morte desta, seja pela separação dos pais, ou por outro motivo, muitas vezes transfere o trauma e o recalque para a madrasta, "culpando-a" pela dor.
A canção "Madrasta", de Renato Teixeira e Beto Ruschell, abre novas possibilidades da relação madrasta-enteado. O sujeito canta a felicidade de receber a nova (e estrangeira) figura em casa: onde ela ocupará lugar central.
A forma mas sincera, no entanto, de demonstrar as boas vindas e o afeto o sujeito encontra nos versos: "Minha madrasta bem vinda na varanda, onde me escondo dos medos na paz que ofereço a você". Ou seja, ele leva a madrasta para dentro do lugar mais secreto: a varanda - espaço seguro (esfera protetora) de onde ele pode ver a paisagem ao redor, perto e ao longe.
Cansado de andar só na vida, afinal todos nós precisamos de alguém que nos cante (e importa dizer que em nenhum momento ele se refere à ausência da mãe, o que aponta a sensibilidade diante da nova figura que chega), o sujeito se deixa amar e ama também. No "por aqui" final, o sujeito parece dizer: "entre, aqui é seu lugar".
"Madrasta" é uma canção difícil de ser cantada: ela é toda semitonada, cantada no intervalo entre uma nota e outra. A bonita interpretação de Roberto Carlos (O inimitável, 1968), com alongamentos vocálicos e segmentação das sílabas, redimensiona a paixão do instante em que a madrasta chega e aponta promessas de sol do novo dia.

***

Madrasta
(Renato Teixeira / Beto Ruschell)

Minha madrasta bem vinda no caminho
Onde andaremos os três
Nós já podemos dizer

Nossa casa, e o vale verde
Que se dá por trás dessas janelas
Será minha maneira mais sincera de lhe ver

Minha madrasta bem vinda na varanda
Onde me escondo dos medos
Na paz que ofereço a você

Nossa casa, aceite o afeto
De quem sempre andou tão só na vida
Que seja o nosso encontro
O ponto, o sol de um novo dia

Minha madrasta bem vinda por aqui

09 julho 2010

190. Alma nova

Zeca Baleiro é um artista brincante: sabe diluir o sangue do poeta em porções generosas de ironia e humor. Suas letras (e baladas) captam a tristeza e a devolve ao mundo em forma de alegria consciente.
Totalmente homo ludens, ou seja, sujeito que sabe usar (brincar), com sabedoria refinada, a ginga do indivíduo posto na existência, Zeca Baleiro toca a sensibilidade dos seus ouvintes por mexer, de leve mais cirurgicamente, em temas que inquietam a todos nós: sujeitos que muitas vezes, pelas intempéries (e mesmo pelas pequenas alegrias) do cotidiano, nos tornamos insensíveis à vida.
Os sujeitos criados por Zeca Baleiro, ao contrário, lançam-se no espiral de fumaça: fazem dos limões limonadas, rindo de si e das tempestades. Eles não tem medo do ridículo e, por isso, afetam e são afetados pela vida: vivem de fato.
Em Baladas do asfalto e outros blues (2005) não é diferente. Na canção "Alma nova" (Zeca Baleiro e Fernando Abreu), por exemplo, sugere-se um diálogo em que só ouvimos a voz do sujeito da canção. Este discute com sua alma (desejosa de liberdade), pois ela não cabe em si (no corpo do sujeito) quando vê a amada "linda, nua e um pouca nervosa".
A mensagem é clara e o sujeito de Baleiro brinca com as várias camadas de nosso corpo físico e astral buscando entender quem de fato ele é, e quais são os (des)limites do desejo. Mas com o espectro da liberdade sempre em voltas.
A alma (dona de si) se espalha (quer se lançar), enquanto o sujeito diz "calma alma minha", na tentativa de recolhê-la: calminha. Ele pede calma à própria alma (aliás, a palavra "alma" está dentro da palavra "calma"). É preciso conter o ímpeto do desejo, afinal o sujeito da canção está no meio de uma discussão com a amada.
Por outro lado, o exato fato da outra estar nervosa (mas também nua) enriquece a sua personalidade e a sua beleza: daí o desejo louco da alma, que, ao que tudo indica, representa o instinto do sujeito. Isso surpreende ao próprio sujeito, pois ele não entende como a alma entra nessa história, afinal o amor é tão carnal: subvertendo e rompendo a ideia (algo) romântica das dicotomias amor e paixão; razão e desejo; ética e moral.
A mensagem da canção extrapola a querela entre o sujeito e a amada e aponta para luta interna entre a razão do corpo do sujeito e sua alma imatura (prenhe de desejo e vontade). Ele revela (diz) tudo isso para a outra (a musa inquietante) e nós, como bons ouvintes (quase voyeurs diante das imagens cantadas), invadimos a intimidade das personagens.
A alma (sempre nova ao contato com a visão da amada do sujeito) tem vontade de vida e indo além da posição de voyeur, quer entrar no jogo, quer entrar na musa, como já viu (tantas vezes) o sujeito fazer, com o corpo.

***

Alma nova
(Zeca Baleiro / Fernando Abreu)

Sempre que te vejo assim
linda nua e um pouco nervosa
minha velha alma
cria alma nova
quer voar pela boca
quer sair por aí
e eu digo
calma alma minha
calminha
ainda não é hora de partir
Então ficamos
minha alma e eu
olhando o corpo teu
sem entender
como é que a alma entra nessa história
afinal o amor é tão carnal
eu bem que tento
tento entender
mas a minha alma não quer nem saber
só quer entrar em você
como tantas vezes já me viu fazer
e eu digo
calma alma minha
calminha
você tem muito o que aprender

08 julho 2010

189. Meu esquema

Os sons vindos de Pernambuco, e que os ventos espargem pelo mundo afora, revigoram a aceitação da vida. Misturando o mundo inteiro na mirada mangue (com os pés fincados na lama), a banda Mundo Livre S/A é um motor de luz e som: alegria e felicidade de ser local e universal.
De Recife-PE (espaço do despoletamento do Manguebeat), mas com antenas que captam o vigor da raça humana, Fred Zero Quatro e seus parceiros transformaram o tédio em cinismo pensado: maturaram a atitude punk com o azeite amalgamista do Brasil, sem perder a força do protesto (em favor da vida).
Samba e guitarra, rock e estratos sonoros da tradição sonora pernambucana (oriundos da cultura oral) passaram a (con)viver.
Em Por pouco (2000), com melodias mais leves, mas com a mesma qualidade das letras afiadas, a banda mira naquilo que falta no brasileiro e afirma que "por pouco" não somos e temos mais. Ironia e perspicácia: "O temperamento latino é fogo"; "Vai ter boa intenção assim no inferno"; "Votamos no quase honesto pois quase acreditamos nele".
"Meu esquema" é lírica. Canta a musa galega: aquela que com sua energia mantém o sujeito da canção no ar das delícias. Como tudo no Brasil (para bem e para o mal) se reduz a futebol, as metáforas e comparações da letra são extraídas do universo futebolístico: no ápice da impossibilidade de dizer o que a musa representa para si, o sujeito arremata: "Ela é Rivaldo Maravilha mandando um gol".
O ouvinte vai conhecendo a princesa galega aos poucos, passeando pelo (junto com o) esquema rítmico e pictural do sujeito que canta. Ela é ela e é tudo: ele tenta descrevê-la mas, chapado no que vê e curte (ela é um curso de anatomia e playcenter) não dá (as palavras são insuficientes) para dizer o que é estar com ela.
O sujeito de "Meu esquema" circula a sua fulô com pétalas-metáforas que a compõem e lhe dão vida na imaginação do ouvinte. Assim como ela (história dele) dá vida ao sujeito. Eis o esquema de sedução engendrado por ele.

Meu esquema
(Fred Zero Quatro)

Ela é meu treino de futebol
Ela é meu domingão de sol
Ela é meu esquema

Ela é meu concerto de rock'roll
Nação, minha torcida gritando gol
Minha Ipanema

Ela é meu curso de anatomia
Ela é meu retiro espiritual
Ela é minha história

Ela é meu desfile internacional
Ela é meu bloco de carnaval
Minha evolução

Galega
Tento descrever o que é estar com você

Princesa
Todos vão saber que eu estou muito bem com você

Ela é minha ilha da fantasia
A mais avançada das terapias
Meu playcenter

Ela é minha pista alucinada
A mais concorrida das baladas
Meu inferninho

Ela é meu esporte radical
Poderosa, viciante, mas não faz mal
Meu docinho

Ela é o que meu médico receitou
Rivaldo Maravilha mandando um gol
Minha chapação

Galega
Nem dá pra dizer o que é estar com você

Princesa
Todo mundo vê que eu sou mais

07 julho 2010

188. Primavera

Um movimento interessante e feliz está acontecendo: artistas que, a princípio, fazem música para "gente grande" tem se dedicado a lançar discos direcionados à "gente miúda". Basta pensar no disco "Pequeno Cidadão", no projeto infantil de Cid Campos e na série de Adriana Partimpim.
De fato, a atitude de artistas como Vinícius de Moraes e Toquinho, além de algumas esparsas e competentes coletâneas, isso sem contar nos discos provindos de programas televisivos, estão na origem do gesto que tem impulsionado os artistas contemporâneos. E, óbvio, a mirada em um nicho consumidor que sofre com uma enorme lacuna de ofertas, é só ir a uma festa infantil para sentir isso.
A premissa de que trabalhar para crianças é complicado, pois seria difícil agradar a um público tão exigente e, ao mesmo tempo, favorecer o contato, desde cedo, com recursos estético-poéticos sofisticados, parece que tem instigado (desafiado) tais artistas de hoje.
E eis que surge a muito bem vinda contribuição da banda Pato Fu, com o disco Música de brinquedo (2010).
Ao assistir aos vídeos de divulgação, na internet, o ouvinte (expectador) tem a impressão de que tudo aconteceu naturalmente: que aquelas letras, algumas já conhecidas do público adulto, nasceram para (e com) aqueles arranjos. E este é o grande trunfo (e a busca incansável) do bom cancionista. Ou seja, equilibrar melodia e letra de forma que o ouvinte tenha a sensação de que a canção soa (flui) da forma mais simples possível.
No entanto, ao analisar o disco Música de brinquedo e descobrir que a música das canções foi composta com a utilização de brinquedos (daí o título do disco), ficamos mais admirados com os resultados. Não é fácil tirar os acordes, tons e timbres que um cancionista, acostumado com a palheta sonora dos instrumentos "profissionais", se acostumou, e precisa, para compor a partir de instrumentos, muitas vezes monocórdios e impensáveis. Daí a profusão de recursos, técnicas e soluções a serviço da (trans)piração do pessoal do Pato fu.
"Primavera", de Cassiano e Sílvio Rochael, que já ganhou excelentes interpretações (destaco a de Tim Maia, exatamente pelo arrojamento do arranjo e da voz do cantor), ganha moldura lírica e romântica. O sujeito que deseja atravessar as quatro estações do ano (símbolos das transformações impostas pelo tempo) ao lado do ouvinte ganha contornos de uma relação mãe-bebê. A mãe canta o infante, mostra a este que nada irá separá-los.
Em contrapartida a criança traz uma rosa (afinal é primavera, o início feliz das relações)
para presentear a mãe: e o céu fica lindo; a canção ganha outras cores: vibrantes e ternas. Ela agora investe na relação dialógica mãe-bebê e embala os corações co-dependentes.

***

Primavera
(Cassiano / Sílvio Rochael)

Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Eu quero estar junto a ti

Porque (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo, meu amor

Trago esta rosa (para te dar)
Trago esta rosa (para te dar)
Trago esta rosa (para te dar)

Meu amor

Hoje o céu está tão lindo (sai chuva)
Hoje o céu está tão lindo (sai chuva)